Disciplina mental. Julga, uma mordaça necessária. Olha em redor e distingue-se a rebaldaria mental, um leito de desorganização, um vírus caótico. Amedronta-se diante de qualquer ressonância de caos. Não consegue caminhar entre a desarrumação de tudo. Por isso impõe a si mesmo as algemas da disciplina mental. Férrea disciplina mental. Um jugo irrecusável.
Por onde pisa, sempre vestígios da meticulosa forma de ser. Tudo pensado, como se fosse um arquitecto que não deixa o mínimo traço ao acaso. Não há nada que não seja planeado. As coisas movem-se dentro de um espartilho nascido no afã da meticulosa organização mental. Não deixa de ser um espartilho, pois liquida a espontaneidade, absorve a capacidade de reagir aos imponderáveis que assaltam a forma ordenada dos planos incapazes de lidar com imprevistos. Nem assim se demove. Joga com a lei das probabilidades, com a escassa probabilidade dos imprevistos, para teimar planos milimétricos. Dos planos que não se podem afastar um milímetro que seja das coordenadas fixadas, ou o caos irrompe com o seu macilento, doentio rosto.
Convive mal com a antítese da sua meticulosa peregrinação quotidiana. Incapaz de se dar com gente desorganizada. A falta de sintonia com quem leva vida errante fermenta alguma intolerância. Ou tudo se compõe conforme os seus esboços, ou o caos que se instala causa o desconforto de quem se sente desnorteado, como se tivesse perdido o mapa no meio de um lugar ermo e desconhecido, ou como se em noite de nevoeiro fechado ficasse desprovido de candeia.
Não importam os reptos que desafiem a monotonia. É cultor de todas as rotinas. São o seu oxigénio. A organização mental de que depende é uma rotina instalada. Tudo se passa como se houvesse caminhos mentais que devem ser percorridos todos os dias, numa sucessão organizada de passos que se repetem uns atrás dos outros. Na prisão de uma lógica que se emparelha nos meandros da mente. Se alguém propõe romper a rotina dos dias instalados, num convite à excepcionalidade do espartilho da tremenda organização interior, a espontaneidade tem por uma vez lugar. É essa espontaneidade que devolve resposta negativa ao aceno, não vá a meticulosidade implodir. E o que se seria de si, das suas pessoais exigências, se o endeusado altar da coerência abrisse uma brecha?
Meticulosamente, apanhado todavia numa prisão de si. Ela também meticulosa. Duplamente cárcere. Pela intolerância que desenvolve aos que vagueiam na desorganização mental, entregues ao laxismo, os baldas que não suporta. E cárcere pelas masmorras que cultiva dentro de si. Pelo que nega em si, só para honrar um inane compromisso fixado com a coerência que se impõe, meticulosa e asfixiante, totalitária, algoz da sua própria liberdade.
Pode haver quem faça o diagnóstico da doença. Ou haver quem se limite a respeitar a dependência da ditatorial coerência. Assim como assim, é de dentro de cada um que irrompe uma certa meticulosa forma de ser. Ainda que essa meticulosidade opte por uma militante desorganização mental. Incompreendida pelos cultores da exigência interior, que são incapazes de tolerar a indisciplina mental dos outros. Tudo se resume a saber se somos capazes de aceitar os outros como são. A maior tolerância é que mostramos quando não queremos mudar o que os outros são. De resto, há-de sobrar um vestígio, um vestígio que seja, para tornar compatíveis existências que o não parecem. Esse é o maior desafio: o da dança compassada entre corpos que se movem em direcções diferentes, com ritmos diferentes.
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