11.12.09

É preciso decoro no parlamento?


Abriu telejornais: dois deputados tiveram uma pega verbal. Terra de brandos costumes, estamos mal habituados quando a confrontação verbal atinge tamanha intensidade que os mais puritanos asseguram ter "passado dos limites". Desta vez a pega verbal meteu insultos. E se nem sequer chegou a haver baderna de tasca, pois os vitupérios que a senhora deputada do PSD dirigiu ao senhor deputado do PS, mais a defesa de honra deste, não entraram pelo enxovalho do calão que faria os puritanos corarem de vergonha, o episódio serviu para abrir telejornais.

Eu continuo a teimar que os brandos costumes não são virtude: é o dos maiores defeitos em que maceramos. Porque, em tudo, nos ficamos pela metade. Entramos cheios de entusiasmo, mas a meio metemos marcha atrás e o entusiasmo no esquecimento. Somos falinhas mansas e os malditos consensos que distribuem vitórias por todos os que entram numa contenda, evitando que as posições se demarquem. O zénite desta covarde maneira de ser é a insistência de que não se deve usar certo tipo de linguagem em determinados locais por respeito "institucional".

O parlamento é um bom exemplo. É a casa da democracia. A linguagem rasteira, mais própria das tascas e das varinas, deve ser combatida. É como no tempo em que havia a mania do cavalheirismo: podiam as más palavras ecoar em pensamentos, mas imperativos de decoro evitavam que elas se soltassem da língua. A língua não era aferroada para não enlamear o nome prestigiado do parlamento. Os tempos mudam. Com a mudança da agulha do tempo, reinventam-se comportamentos. Querem-nos fazer crer que uma troca de insultos entre dois deputados avilta o parlamento e faz corar de vergonha a nação inteira. Eu prefiro dois deputados que libertem a língua e digam o que vai na alma. Prefiro a frontalidade à fina capa de verniz da decência institucional que asfixia um vendaval de maus pensamentos sobre o deputado adversário.

Chego a esta conclusão através de um método que parece esquecido: a analogia. Emprenham-nos os ouvidos com a semântica parlamentar. No parlamento estão os nossos representantes. Devem estar à altura de um órgão de soberania, que ainda por cima é um esteio (e o principal) da sacrossanta democracia. Os puristas esclarecem que os deputados devem dar o exemplo aos que representam. Os representados devem encontrar nos deputados um espelho de boas condutas, recato oratório e respeito pelos adversários. Sem nunca, mas mesmo nunca, escorregarem para o chinelo e dispararem insultos para um deputado que esteja noutro quadrante.

Reverto o método da analogia para contestar o que está convencionado pelos puristas. Pois se os deputados representam o "povo", e se o povo se farta de distribuir insultos e impropérios por conhecidos e desconhecidos, os deputados devem ser uma imagem do "povo" que os colocou na sinecura parlamentar. Defender o contrário e esconder o rosto detrás do incómodo das duras palavras trocadas entre a deputada do PSD que, vinda da "linha de Cascais" (nas palavras do "ofendido"), não resistiu a chamar palhaço ao deputado socialista que a incomodava (o deputado "rural", nas palavras do próprio), é só fazer de conta que o parlamento é um lugar de miragens. O parlamento deve ser um laboratório vivo da sociedade que representa. Exigir que os deputados sejam gente afastada das palavras grosseiras e dos insultos a adversários é desumanizar suas excelências – ou ingloriamente deificá-las em barro. É exigir de mais. Torna o parlamento num equívoco cheio de artificialidades.

O parlamento era mais vivo e humano se os deputados pudessem chamar filhos da puta uns aos outros. Com decência. Diria, sem elevar a voz, "se me permite, vossa excelência é um notável filho da puta". E o outro, em defesa da honra, puxava do microfone e suavemente disparava, sem perder o sorriso discreto, "com a anuência do senhor presidente da Assembleia, puta é quem assim trata a santa da minha mãezinha".

Lamentável é noticiar-se o episódio como coisa pouco edificante. Pelos vistos, é preferível escondermo-nos detrás das máscaras e insistir em fazer de conta. Muito, fazer muito de conta.

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