Está convencionado dizermos que "vem a talho de foice", a expressão idiomática para se dizer, por palavras diferentes, que "vem a propósito" falar-se disto já que se estava a falar daquilo. Quando alguma coisa vem a talho de foice, fazemos a ponte entre dois assuntos que, à partida, não têm ligação entre si. Mas só aparentemente é que não há vínculo entre eles, pois logo a seguir atamos as pontas separadas enquanto advertimos, "a talho de foice", que afinal uma coisa leva à outra.
Por exemplo, podíamos falar do inverno rigoroso com que fomos agraciados este ano. De caminho, enquanto resgatávamos da memória um anterior inverno tão severo, podíamos interrogar, a talho de foice, se o catastrofismo das alterações climatéricas faz sentido. Ou podíamos discutir a probidade do primeiro-ministro a propósito dos rumores que se ouvem por aí acerca da linguagem de caserna que usou nos telefonemas com o seu grande amigo o banqueiro do BCP. Para, a talho de foice, mergulharmos numa intensa discussão sobre a dignidade (ou indignidade) de usar chamadas telefónicas privadas na batalha política. Terceiro exemplo: enquanto assistimos ao discurso habitualmente enfadonho do presidente da assembleia da república (na muito solene cerimónia em que uma delegação do parlamento vem desejar boas festas ao presidente de república – ou em qualquer circunstância em que Jaime Gama ora), diríamos que vem mesmo a talho de foice falar de medicamentos que induzem o sono.
Esta é uma expressão idiomática que sempre me soou mal. Ouvia as pessoas dizerem "a talho de foice" e não percebia o que tinha o talho a ver com a foice. Pois se no talho se amanham as carnes dos animais já cadáveres que depois se expõem em nacos vistosos e se as foices são usadas para ceifar os cereais, tinha dificuldade em perceber a coerência entre as duas palavras. Naquela curiosidade típica da idade dos porquês que começa na infância e nunca mais pára, recordo-me de ter perguntado ao meu pai o que se pretendia dizer quando alguém pronunciava a expressão "a talho de foice". Sedimentei a resposta sem perceber a explicação. Continuei, pelo tempo fora, a coçar a cabeça de cada vez que escutava alguém dizer que isto vinha a talho de foice daquilo. A certa altura interroguei se não se tratava daquelas expressões idiomáticas que entram nos costumes sem nos darmos conta se elas têm qualquer significado.
Para piorar a embirração com a expressão, ela continha uma palavra que esbarrava em pessoais preconceitos. (E quem afirmar a pés juntos – outra expressão idiomática que dava pano para mangas… – que não tem preconceitos, que atire a primeira pedra ao ar). Eu esbarrava na palavra "foice"; a ininteligibilidade da expressão idiomática ainda não se escorava num preconceito contra a palavra "talho". Encalhava na foice porque a ligava a um dos símbolos do comunismo. Alérgico ao comunismo como sempre me conheci, de cada vez que escutava alguém dizer "a talho de foice", revolvia-me nas entranhas porque a foice tinha a conotação com o escabroso, esclerosado comunismo.
O que é pedagógico é perfurar as paredes da expressão idiomática. Ela combina palavras que aparentemente encerram o significado da própria expressão. Qual é a relação causal entre o "talho" e a "foice"? Nos talhos não se comercializa o que é ceifado nas searas pelas foices empunhadas pelos camponeses. Da mesma forma que nos campos trabalhados pelas foices não se colhe mercadoria vendida nos talhos. Indo a fundo na expressão que combina dois termos tão em descompasso um com o outro, percebe-se o seu significado. Se, quando dizemos que isto vem a talho de foice em relação àquilo, queremos atar as pontas de dois assuntos que na aparência não têm qualquer relação entre si, faz todo o sentido dizer-se que "vem a talho de foice". O talho e a foice também não se entoam na mesma sintonia.
Que é como quem diz – pedindo o calão de empréstimo ao povo: quando se pensava que o cu não tinha a ver com as calças, afinal até tem.
13 comentários:
Desde muito cedo que tomei conhecimento da expressão "a talho de foice", até já a usei uma ou duas vezes nos meus simples e humildes escritos, nos quais dou vazão, mais do que a tudo o resto, ao meu sentir. Mas quase jurava que escrevi "a talhe de foice" em vez de " a talho de foice", mas tanto faz. Lembro-me que, quando em criança frequentava a escola primária, que era assim que se designava ainda não há muito tempo, foi notado pelos meus professores, a minha relativa facilidade na interpretação do vocabulário, digamos assim. Na altura costumávamos fazer uma lista das palavras difíceis que constavam do texto a estudar. Fosse pelo que fosse, a verdade é que num instante eu completava a dita lista com os significados correspondentes. É certo que tinha muitos contactos com os livros. A colecção dos livros de aventuras dos cinco e dos sete li-a eu num ápice, melhor dizendo, devorei aqueles livros, e outros que se seguiram, além dos que se lhe antecederam. Não me lembro de consultar dicionários, mas o certo é que aprendi sozinha a discernir sobre o significado, quanto mais não fosse aproximado, de uma qualquer palavra ou expressão, apenas pelo sentido que parecia ter na frase. Por isso mesmo, quando pela primeira vez tomei conhecimento da expressão "a talho de foice", interpretei-a baseando-me na imagem, isto é, ao ceifar, pegamos em mais do que um pé de espigas, penso eu, que nunca vi, mas presumo. Ora, assim sendo, seria pegar em mais de um assunto, mas que alguma coisa tivessem em comum. É um pouco como você diz: um reunir de pontas, se bem percebi!
Um Bom Ano! É o que lhe desejo, embora você possa dizer que desejar seja o que for nesta época é um lugar comum, ou um pró-forme, pois que seja, ainda assim se o desejo é porque na verdade o sinto, se não porque o faria?
Obrigado. Embarcando nas convenções (ou apenas para ser bem educado), retribuo os votos de feliz ano novo.
PVM
Curioso... desde há muito que uso esta expressão e sempre assumi que o "talho" nada tem a ver com o local onde se vende carne mas com o verbo "talhar", que é como quem diz cortar. Ou seja, a foice corta o cereal que se pretende cortar mas também tudo aquilo que esteja na vizinhança deste. É como quem diz "matar vários coelhos duma cajadada". Ou, neste caso, ceifar vários assuntos numa só talhada. Faz sentido, não? Ou estou enganado? Alguém pode esclarecer?
Curioso... desde há muito que uso esta expressão e sempre assumi que o "talho" nada tem a ver com o local onde se vende carne mas com o verbo "talhar", que é como quem diz cortar. Ou seja, a foice corta o cereal que se pretende cortar mas também tudo aquilo que esteja na vizinhança deste. É como quem diz "matar vários coelhos duma cajadada". Ou, neste caso, ceifar vários assuntos numa só talhada. Faz sentido, não? Ou estou enganado? Alguém pode esclarecer?
A questão básica passa pelo simples facto de a frase idiomática não ser "a talho de foice" mas, tão simplesmente "a talhe de foice"...
A variação notada nos últimos comentários é irrelevante: de facto, pode dizer-se "a talhe de foice" ou "a talho de foice". Ambos os elementos correspondem a variantes morfológicas de substantivos masculinos derivados regressivamente do verbo "talhar": o "talho" ou o "talhe", são, por isso, os resultados, ou cortes, do talhar da foice. A expressão não configura, por isso, nenhum paradoxo de sentido, apontando, pelo contrário, para a ideia de que "vem a propósito", dentro do mesmo enquadramento ou do mesmo "recorte" temático, como os rebentos, as espigas ou as ervas talhadas em simultâneo pela lâmina da foice. É bem verdade que tendemos a proceder a interpretações analógicas, associando muitas vezes sentidos que não estão originariamente na expressão ouvida. Para quem vem do campo, e conhece realmente a foice, e a forma de ela cortar/talhar, e não a vê como um símbolo político, ou social, a expressão é absolutamente clara, transparente e neutra...
Extraordináriamente bem explicado.
Ana Paula Pinto... muito obrigado.
Em Portugal é mais corrente " talhe de foice"...
Totalmente de acordo com a Ana Paula Pinto. Logo não podia estar mais em desacordo com as parvas e pretensamente humoradas justificações do autor do blog, ao pôr em causa a justeza do aforismo popular - seguramente mais antigo que o conceito ideológico que pretendeu martelar. Martelar, de martelo; martelo, foice, dois instrumentos que, juntos, parecem tirar o sono ao inefável felino. Agora talho?! O talho, aqui, foi-se! Que é para onde o Sr. devia ir!
E não deixa de ser curioso ter o autor activado a moderação de comentários, quando não deixa de ofender, de forma soez e primária, ainda que implicitamente, os adeptos do comunismo - que ainda são muitos, quer goste, quer não, «para mal dos seus pecados».
Claro que este comentário não verá a luz do dia, nem esse será o meu propósito, mas a «talhe de foice» lhe direi: «quem não se sente não é filho de boa gente!».
Erro seu, sr. Manuel Alexandre. O comentário foi publicado, sem mais demoras. Talvez, se fosse comunista, o comentário não veria a luz do dia, tamanhas as credenciais de tolerância que são apanágio dos comunistas.
E publico o seu comentário com uma penitência minha: a de ter errado na evocação do adágio popular. Se fosse minha pretensão ser imune ao erro, já tinha eliminado o texto do blog. Mas como não me levo muito a sério, deixei que esta prova da minha estultícia continuasse publicada.
Isso mesmo!
A talhe de foice é a frase correcta.
Efetivamente que essa é a resposta. Só mesmo quem não conhece o verbo "talhar" é que pode escrever centenas de palavras para justificar uma hipótese inicial sem sentido.
Manuel Alexandrino, pretendeu dizer. A ansiedade em acotovelar-se com a ciência política chavasca leva à inexactidão, as mais das vezes...
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