Os químicos são os patrões do mundo (pelo menos deste mundo que se chama moderno). Os químicos-pessoas, peritos na manipulação dos elementos, que descobrem coisas ora fantásticas, ora aterradoras. Ficamos gratos por a existência ser mais confortável, mas logo desconfiamos quando alguns usam a criatividade para fins suspeitos.
Acabei de saber que há cigarros que não deitam fumo. Têm menos nicotina do que o tabaco normal e duram (diz a ruidosa publicidade) dez minutos até se extinguirem de vez. Enganam os polícias dos bons costumes que perseguem os fumadores como se fossem os novos portadores de lepra. Continua a publicidade: os cultores do tabagismo até podem cometer a provocação de puxar um cigarro mesmo nos lugares onde é terminantemente proibido exalar o fumo empestado de venenosa nicotina. Dá-se o caso destes serem cigarros (como dizer?) de prestidigitação, cigarros que se fumam sem libertarem fumo. Uma contradição de termos desfeita porque os químicos-pessoas descobrem funções químicas que transformam as convenções.
Puxamos pela memória e por outros exemplos de manipulação dos elementos: café sem cafeína, adoçantes sem sacarose, cerveja sem álcool, leite sem lactose, pão e bolachas sem glúten, ovo em pó usado na confecção industrial de bolos, puré de batata sem vestígios do tubérculo. E há os sucedâneos, uma espécie de banha da cobra para quem anda à procura do barato e não se importa de ser atraiçoado pelo sabor de quinta categoria, ou ficarem com o restolho da frustração quando o sucedâneo fica a léguas de distância do original. É quando os peritos da química não levam vinte valores. Quando os melhores esforços fracassam na tentativa de encontrar um substituto perfeito através de uma pletora de químicos. Nem sempre a artificialidade vinga. A natureza ainda consegue ser irreplicável. E os químicos-pessoas descem à sua condição humana.
Os peritos no assunto tentam-nos convencer que as suas invenções são assépticas e que esse é um dom que legam ao bem-estar da espécie. Todavia, uma certa maré revivalista irrompe contra padrões demasiado desumanizados por fugirem dos parâmetros da natureza como a conhecemos, tocando uma nova madrugada onde tudo é fabricado dentro de laboratórios. Noutras ocasiões, lemos estudos que contrariam a retórica das metódicas conquistas dos ratos de laboratório. Argumentam que há doenças cancerígenas que se desenvolvem pela mutação dos elementos, pois o organismo reage mal a essas adulterações.
Neste lugar e neste tempo que são o altar-mor da adulteração da informação, ficamos por saber onde está a informação fidedigna e onde encontramos estudos comprados em antecipação para chegarem a determinada conclusão. O melhor é seguir com os dias sem medir as consequências. De outro modo, entramos numa espiral de histeria e, um dia destes, passamos mais tempo a consumir informação sobre o que nos alimenta do que com a tirar prazer da alimentação. Então a comida e a bebida seriam despromovidas a um rotineiro, mecânico acto com serventia única de subsistência. Como se nos diluíssem os prazeres gustativos, refugiados na psicose dos ingredientes e de como são fabricados.
Eu, não fumador, fiquei maravilhado com a invenção do tabaco sem fumo. Um feito que merece aplauso demorado, a ser creditado aos inventores. Imagino os fumadores militantes, fartos de serem perseguidos pela polícia dos costumes e pelo numeroso exército de agentes secretos que estão convencidos que a delação é aspiração máxima de cidadania. Imagino-os num restaurante, após opípara refeição, a puxarem de um cigarro. Imediato, o soar dos sonoros alarmes, pelo ar de reprovação dos censores morais em redor e pelas vozes indignadas que vociferam, alto e bom som, que a sagrada lei é para cumprir. E o nosso fumador, indiferente e bonacheirão, incapaz de guardar para si um esgar de desdém, acende o cigarro e ostenta-o na sua esfíngica ausência de labaredas e de fumo. Para os outros em redor engolirem em seco. Uns boquiabertos, outros irados por ter havido um químico-pessoa que descobriu o tabaco sem fumo.
(Em Wessem, Holanda)
1 comentário:
Eu, fumador militante, deixo-lhe aqui os meus parabens pela sua felina crónica; a coisa promete, vou ver o resto do blog.
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