6.5.10

À beira da apoplexia

In http://5dias.net/2010/05/05/dont-give-up-the-fight/
Tumultos em Atenas – já lá vão três mortos na batalha campal entre os que protestam contra a austeridade e a polícia. As pessoas saem à rua contra a austeridade. Estão cansadas de serem sempre elas a pagar a factura da incompetência dos que mandam. Protestam contra a retirada de regalias. Perguntam se isto não é um absurdo contra-senso: afinal, crise tão implacável não toca mais de perto os mais desprotegidos? Não ocorre aos governantes que a factura é desproporcional, que os sacrifícios pesam mais aos menos endinheirados? Erguem-se as cortinas da solidariedade internacional que fora bandeira desfraldada noutros tempos: “somos todos gregos”, li algures.
Subscrevo: está tudo bem encaminhado para sermos a próxima Grécia. Se não estivesse instalado um estado de negação, podia-se perguntar pela lógica dos “grandes investimentos”, provavelmente dos elefantes brancos que estão para vir, quando estamos endividados até ao tutano e tudo se compõe para que paguemos ainda mais caro pelo dinheiro que pedirmos emprestado. Mas esta é uma terra habituada a empurrar os problemas com a ponta da barriga, lá para a frente, para os que vierem depois. Pode ser que as funestas agências de rating façam um favor: de aumento em aumento do risco da dívida, que encareçam tanto o preço do dinheiro que pedimos emprestado lá fora que o governo se resigne ao adiamento das obras faraónicas.
É encantador ver como se combate a crise incendiando ainda mais a candeia da crise. Faz lembrar os contra-fogos que os bombeiros ateiam. Um fogo contra o outro apaga ambos. Ao contrário do que imaginam os amadores no governo, eles não são bombeiros. São pirómanos.
Ainda as imagens da Grécia à beira da desordem. A tartamudear os protestos, carradas de oportunismo político, a extrema-esquerda a granjear o apoio dos descontentes que crescem a uma velocidade imparável. Gostava de saber falar grego para entender se os contestatários estão contra as medidas de austeridade, ou se não concordam com a distribuição do ónus das medidas. A atestar pelo exemplo caseiro, um somatório dos dois sintomas. São contra a austeridade, pois do crescente endividamento público não vem mal ao mundo. Atiram-se furiosamente contra as medidas de austeridade por sacrificarem os mais desprotegidos.
Às vezes era conveniente fixar comparações simplistas (ainda que o simplismo seja mau método). O simplismo apenas como instrumento pedagógico. Devia haver quem explicasse às gentes que assim como uma família não se pode endividar até ao infinito, também os Estados têm um limite para se empenharem no prego. E alguém que explicasse que a dívida do Estado vai ser paga muito mais tarde, pelas gerações que vierem depois; só se admitiria que os habituais sacerdotes da “justiça social” – os que se auto-proclamam campeões da democracia – empregassem o conceito quando se preocupassem com os direitos das gerações vindouras.
A crise, pano de fundo. Esta década que está quase a acabar foi uma década perdida. Não crescemos. Ficámos para trás na comparação com os parceiros. Alguns que estavam atrás já nos passaram a perna. E já não sei se a crise é só um estado de espírito. A maneira artificial de nos desviarem a atenção de outras feridas abertas, difíceis de cicatrizar. Se estamos em crise, como podemos cavar ainda mais fundo a cova para onde podemos escorregar? Seremos adoradores da crise? Entrada em cena do psiquiatra de pacotilha: geneticamente fatalistas, não nos damos bem com as coisas boas da vida. Vegetamos rasteiramente na crise – ora mais suave, ora mais apopléctica –, recusando o seu contrário. Não nos queremos viciar no antónimo da crise. É que quando lá regressássemos, doía muito mais. O melhor é de lá não sair.
Digamos, pois, bem da crise. Apoplexia nenhuma. Estado natural, como se a crise enterrada fosse a água retirada ao peixe de aquário.

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