11.5.10

Filosofia de algibeira


In http://www.pedravermelha.com/for-prof/historia-gd/9arabes/compasso%20perfeito,%20C%20Scheiner,%201615.png
Não andes desapossado das coisas em teu redor. Se te entretiveres na distracção, as coisas apoderam-se de ti. Nessa altura, só serás uma pálida imagem do que projectaste ser (se é que projectaste algo).
Enamora-te das pessoas ao primeiro esboço do conhecimento. Elas são genuinamente puras, encantadoras. O enamoramento é um estado de alma devastador, um altivo cataclismo que arrebata as forças na sua espontaneidade. Afugenta as nuvens negras que teimam em escurecer o horizonte que os teus olhos alcançam. Derrota a lucidez que decanta a impulsividade que julgas nociva.
Não vejas televisão. Lê, mas poucos, jornais. Acerta o passo pela inspiração que vem dos ventos que sopram de algures. Se acaso tiveres discernimento, forma a opinião sem ser pela dos outros. O imenso coro que troveja em uníssono determina a ausente originalidade do pensamento. Não te apoquentes, porém, que o pensamento não se inventa todos os dias. Que não te atormentem as algemas do original pensamento. Por vezes, é maior o alçapão para onde escorregas à custa de forjar um raciocínio singular e, contudo, absurdo. Acalma-te: na maior parte das vezes, nada faz sentido.
Não te acanhes, solta-te do acorrentamento da timidez. Investe com a tua fúria sadia contra a mansidão dos sonhos. Ousa, diz as palavras que julgarias proibidas, choca as consciências com o desassombro. Não o faças com a gratuitidade dos actos que são vazios por dentro.
Arremete contra os imperativos categóricos que te doem por dentro. Por mais que arrastes o pesado fardo do ostracismo, por mais que sejas apontado a dedo quase como exemplar em festim de aberrações, atreve-te na tempestuosa orquestra de palavras malditas. Rende homenagem ao pulsar que fervilha em tuas veias. Deprecia as marés lânguidas e cómodas só por serem as marés tomadas de assalto por uma imensa maioria.
Olha por cima do céu, lá num firmamento que redescobres através da imarcescível intensidade dos teus olhos. Do que só os teus olhos conseguem ver. Deixa que os teus gritos troem tanto que tudo em ti trema assustadoramente. Se for esse o truque para adiar a fuligem do tempo que ameaça deitar-se em densas camadas.
Vive, vive como se o amanhã jamais tivesse lugar. Olha por cima do dia seguinte como se o exercício trouxesse ao início de ti, ao dia presente onde se entoam as coisas tangíveis. Ao dia presente que é sempre o dia primeiro, o mais majestoso dos dias que viveras. Convence-te que o único tempo que tem merecimento é o tempo assaltado pela espessura dos dedos. Não é a espuma do tempo emoldurado, a espuma que se desfaz em nada ao primeiro toque dos dedos.
Não fujas aos caminhos pedregosos. Não teimes na impenitente escada que dá para as traseiras do palco. Não escondas sorrisos por metódico derrotismo. Não venhas de pé atrás às coisas desconhecidas. Não cultives a desconfiança por sistema, o fruto carnal do pessimismo antropológico – tuas algemas mentais. Não sejas o covil onde dançam todos os nãos em cínico esgar de prazer. Não, é o que tens que aprender a dizer para negares os muitos nãos por diante.
E as coisas fazem sentido? Têm que fazer sentido? A única filosofia inteligível é a que toma nota do sentido aleatório das coisas. O mundo inteiro é um desorganizado cardápio onde se compõem as infinitas coisas, todas desligadas umas das outras mesmo quando tomam a aparência de um todo harmonioso. Se há estrada que liga dois sítios, é sempre por acaso. Só uma tremenda ilusão alimenta a ideia de que tudo tem um sentido e um propósito. Pensá-lo é a maior ditadura que sobre ti se abate. 

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