24.5.10

Treta


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O fair play é uma treta. Por mais campanhas oficiais que tentem o pedagógico convencimento que só ganhar não conta – é preciso ser leal com o adversário. Por mais que sejam proclamadas nobres intenções entre os intérpretes dos desportos, mas só para inglês ver. Quando os desportistas estão imersos no auge da competição, só conta o triunfo.
Do lado de fora, há uma multidão de espectadores enfurecidos a exigir o atropelo do fair play. Ainda me lembro, num dos últimos jogos de futebol a que assisti no local, como a turba faminta invectivava os adversários, o código de impropérios à mão de semear, com uma imaginativa veia que faria corar de vergonha o mais dos criativos dos poetas. Ainda me lembro: um anormal à minha frente, a repetir vezes sem conta “parte-lhe as duas pernas” – o que, no discernimento daquela criatura, um atleta da sua equipa devia fazer a todos os adversários que aparecessem pela frente. Vão-me dizer, em pose complacente, é a exaltação da competição que cega os mais furiosamente adeptos. E dizem-se palavras impensadas, como todos dizemos palavras impensadas na excitação do momento.
Talvez seja da impossibilidade de distanciamento dos que se incendeiam por dentro com estas coisas do desporto. Os que andam lá dentro, como são profissionais, tanto envergam uma camisola como logo a seguir vestem a camisola da equipa rival. Os adeptos são fieis – em alguns casos, nos mais doentios casos, dir-se-ia de uma fidelidade canina. (Anteontem descia a Avenida da Boavista e dei de caras com uma folclórica personagem que é tão doentiamente adepta do seu clube, que traja sempre roupas com motivos axadrezados.) Tribalizam-se, os adeptos. Nem merece um segundo que seja essa figura sinistra que é o jovem adepto de claque organizada. Só contam os adeptos comuns, os que compram lugar de bancada para todo o ano, têm profissão respeitável e ficam cegos quando a sua equipa joga.
É uma burguesia bem instalada em demanda da descompressão das exigências do complexo mundo lá fora. Enquanto peões do mundo contemporâneo, em achando-se de si mesmos figuras bem pensantes que corporizam o “código de valores” dominante, renegam o que a alienação clubística neles semeia. Alguns são até cultos. Quando põem ao pescoço o cachecol da equipa e entram no estádio, transfiguram-se. Só conta ganhar. Seja de que forma for. Só há vitórias e derrotas na história e na estatística dos desportos. Os detalhes de um jogo – os insultos aos adversários mais à sua família, os truques que enganam o árbitro, as pernas partidas aos adversários, tudo o que for preciso para sair vitorioso do jogo – tudo não passa de irrelevantes notas de rodapé que não ganham lugar na posteridade.
O desporto é um microcosmos. O lugar onde se não disfarçam os abismos entre as nobres intenções proclamadas e o que se faz. A avidez dos triunfos sobrepõe-se. Dizem sim à lealdade desportiva, mas só até a certo ponto. Àquele ponto de rebuçado em que o mais elevado propósito da vitória pode ficar hipotecado. Nessa altura, na reordenação das prioridades, às malvas o fair play que o imperativo do triunfo grita com os pulmões bem abertos. O desporto não é desporto: é uma guerra onde se usam todas as armas que sejam necessárias para chegar ao triunfo. O desporto, como o fair play, é uma treta.
(Texto talvez inspirado pelo endeusamento do Mourinho por ocasião de mais um estrepitoso triunfo.)

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