27.5.10

Espanhuel



In http://i.s8.com.br/images/games/cover/img4/1507484_4.jpg
Lembram-se, quando andávamos na escola, e havia uma personagem que tinha a mania que era maior do que a sua estatura? O pavão sem sentido que destilava uma putativa sabedoria que para os outros, mais discretos e renitentes no envaidecimento, era motivo de galhofa pelo constante ridículo. E depois, alvo do sarcasmo dos outros, punha-se a um canto, compungido, pondo beicinho de vítima injustiçada, rodeado pelo invariável séquito que lhe amparava os devaneios mais altos do que a sua estatura.
São estas memórias que sobem à superfície quando passo os olhos por vídeos que andam pela Internet com a última performance poliglota do senhor primeiro-ministro. Como agora já não vejo noticiários na televisão, só tomo contacto com o estado maravilhoso da pátria mercê da presciência do senhor primeiro-ministro através dos vídeos que vão aparecendo por aí. Há dias foi de visita a Espanha. Pacóvio como o conhecemos (e só ele parece não dar conta que o é), quis brilhar falando o idioma dos vizinhos. “Falando” é um funesto elogio ao que sua excelência foi debitando – num jantar com empresários, numa cimeira com líderes latino-americanos, numa entrevista matinal num programa da amiga TVE. Se aquilo era castelhano, eu sou proficiente em finlandês.
Entretanto, a pátria discorre sobre as capacidades poliglotas do timoneiro. O banzé que se pôs, estava sua excelência a pedi-lo. Manda a prudência que não falemos do que não sabemos. Isto deve-se aplicar às línguas. Na etiqueta diplomática, aos líderes é consentido falarem na língua nativa quando estão de visita a terra estrangeira. O imperativo redobra quando o líder – como dizê-lo de forma simpática? – não está à vontade com o idioma do país anfitrião. Mas a fanfarronice destrói as cautelas. O mito do homem modernaço, muito à frente de nós, simples mortais sem visão, irrompe que nem um furacão. A urgência em mostrar uma imagem maior do que a sua estatura produz um eco contraproducente: todas as suas fragilidades, ali expostas. Ninguém as tem que destapar. A personagem trata de o fazer com a prosápia típica dos que se autocontemplam como figuras ímpares.
Eu divirto-me. Farto-me de rir de cada vez que abro vídeos com a performance poliglota do indivíduo. Inadvertidamente, ele faz-nos um favor: com a austeridade que a Alemanha mandou aplicar a deprimir-nos tanto, temos que arranjar motivos para desatar à gargalhada. O timoneiro oferece-nos de graça a graça de que andamos carenciados.
Também me é dado a saber que já houve quem viesse em sua defesa. É a coorte que tudo aplaca a transigir outra vez. Inventam-se argumentos que disfarcem a falta de jeito do indivíduo para falar castelhano. Alguns dizem que é um acto de humildade, o arrojo de esboçar umas palavras parecidas com o idioma de Cervantes. Mas aquilo nem portunhol é. É espanhuel puro: uma interminável sucessão de atropelos à língua, apenas português com sotaque espanhol. Os seguidores agarram-se ao aplauso que a performance terá motivado entre alguns do outro lado da fronteira, decerto irmanados por solidariedade socialista. E aproveitam o episódio risível para edificar mais um acto de heroicidade que reforça a imagem (mas só a imagem) de político predestinado, grande líder histórico como só aparece em gestas contadas. Que sua excelência tenha caído no ridículo sem se aperceber parece mais um acto do estado de negação em que andamos a reboque do próprio timoneiro. (E como não há ninguém no staff que, de mansinho, lhe faça notar o ridículo, é algo que me transcende.)
Às vezes, a música aleatoriamente disparada pelo iPod cai que nem uma luva. À medida que este texto estava a ser escrito, calhou em sorte ouvir “I Wanna Be Adored” dos Stones Roses. Bingo!

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