26.5.10

A degola dos motoristas


In http://londonbutlerservices.com/images/chauffeur-door.jpg
Ao que isto chegou! A austeridade com o traço do novo governo britânico corta a eito. Os senhores ministros vão passar a ir a pé ou de transporte público para o ministério. Não há chauffeurs para ninguém. Eu acho bem que se acabem as regalias balofas, aquelas benesses muito aristocráticas transversais às monarquias como às repúblicas, aos democratas como aos tiranos. Ou somos todos iguais a sério, ou se é só para o sermos na letra dos livros que embelezam as doutrinas oficiais, não passa de letra morta.
Esta austeridade vai dar água pela barba. Não podemos fugir da etimologia: austeridade é sacrifício. No emagrecimento das contas, os países vão cortar a torto e a direito nas despesas (os que têm coragem para o fazer). Levo o pensamento além deste tempo, espreito por cima da devastação desta austeridade que terça tesouras com gastos públicos. Haverá um batalhão de gente desocupada. Os motoristas hoje, os jardineiros amanhã. Depois de amanhã (ou, de preferência, hoje) contínuos que se limitam a tomar conta da porta da entrada e a abri-la para sua excelência o ministro passar sem se incomodar. O afilhado do primo da cozinheira já não terá sinecura inútil à sua espera lá na autarquia. Outra vez: esta crise será reparadora.
E os motoristas da coroa britânica, terão sindicato representativo? Ainda que tenham; como vão organizar o protesto que se espera? Recusar-se-ão a levar sua excelência ao destino, entregando-lhe a chave do carro para ele ou ela se desenrascar?
Os ministros e secretários de Estado terão que se meter ao volante quando forem em viagem, ou apanhar o comboio que estiver à mão. Não são diferentes da gente comum, que não se faz transportar com a mania das grandezas. É algo que me transtorna: aquela gente que pega no volante antes de lhe chegar a pimenta do poder ao nariz e que, uma vez empoleirada no totem do poder, se abarbata com as regalias inerentes. Ter motorista é sinal do muito poder que repousa nas nossas mãos. Ora, nesta vida não somos duas personalidades diferentes. Na impossibilidade (não é improbabilidade) de algum dia amesendar no poder, disto estava certo: ninguém me tirava das mãos o volante do automóvel a que tivesse direito.
Temos, contudo, um grave problema social entre as mãos. Vamos supor que a degola dos motoristas se contagia a outros países. É toda uma instituição que se evapora. O que será feito dos homens habituados a levar suas excelências daqui para ali atropelando o código da estrada, espremendo a abonada coudelaria debaixo do pé direito? Vão meter as pantufas, encafuar-se no sofá com o comando da televisão por cabo na mão e mergulhar numa profunda depressão? É que voar pelas estradas e ruas àquelas velocidades, digamos, ilegais, vicia em adrenalina.
Que outras regalias extravagantes se seguem no abate delicioso? Viagens de avião em classe económica, suas excelências sentadas ao lado da maralha. Hotéis de três, quatro estrelas no máximo. Restaurantes modestos e sem vinhos escolhidos por escansão. Senhas de gasolina à medida de quilometragem mensal que não fira a vista. Do lado de lá, do lado das regalias (ou da condescendência com a obscenidade dos gastos principescos dos Estados), dirão que isto são umas migalhas. Ainda que seja, ao menos temos – uma vez que seja – os de cima a dar um exemplo que mereça ser seguido.
Há que anuir que estes são episódios de um país normal. Não sei se posso arriscar que nos outros, onde se mantiver o catálogo de regalias extravagantes, o apego ao poder é ao mesmo tempo um oportunismo revelador. Ou o que por cá se chama, com indisfarçável ponta de ironia, é fartar vilanagem. 

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