Sapatos vermelhos, usa-os o Papa

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Tem lá cabimento que digam que este é um Papa conservador?

(E, para começo de conversa, atalho as convenções: daqui para a frente, “papa”, assim mesmo, com minúscula. É fácil para o ateu e, juro, não é desrespeito pela figura máxima da igreja católica – nem, imploro se necessário for, pelos católicos, não se assanhem com a minha ousadia. Uma explicação é devida por ter redesenhado as convenções. Não é o papa um chefe de Estado? “Papa” não é nome próprio. Aos nomes próprios coloca-se a primeira letra em maiúscula. Se não sou obrigado pelas convenções a usar maiúscula quando me refiro ao presidente da república ou ao primeiro ministro, por que haveria de alimentar uma discriminação aprimorando uma maiúscula para aquele a quem apelidam “sua santidade”?)

Não pode ser conservador um papa que enverga sapatos vermelhos. Vi a fotografia algures. Sua santidade a colocar o pezinho no passeio, o sapato vermelho, impecavelmente engraxado, a descobrir-se entre a comprida sotaina cor de creme que normalmente esconde o calçado papal. Ontem, enquanto escapava ao estado de sítio televisivo (os canais domésticos todos empenhados na reportagem do cortejo papal por Lisboa, excepto a RTP2 que passava desenhos animados), espreitei uma só imagem do “santo padre” (é outra designação, não é?) já com os pés em terra pátria. Só para perceber se trazia aquele reluzente par de sapatos vermelhos. Ou os operadores das câmaras de televisão foram instruídos para não descerem ao nível dos pés do chefe da igreja católica, ou hoje não trazia os famosos sapatos vermelhos. De tão feéricos que são, o simples espreitar por entre o alvo paramento chegava para perceber que eram aqueles os sapatos calçados.

Mantenho a interrogação inicial: um tacanho, masculino conservador não comete a ousadia de calçar sapatos vermelhos. Admito que vou, daqui em diante, escorregar para preconceitos e que os preconceitos são furúnculos evitáveis. E que os que se opõem ao conservadorismo (oui, je m’accuse) não se deixam assaltar por preconceitos – ou, pelo menos, evitam ao máximo a tirania dos preconceitos. Eis o preconceito de que não me liberto: usar sapatos vermelhos. Ocorre-me uma crónica de Eduardo Prado Coelho, alguém que estava nos antípodas do conservadorismo: ele fazia sátira com os bizarros sapatos vermelhos de um escritor sul-africano com que coincidira num congresso de literatura. Quando chegamos ao fim da linha e vemos que Prado Coelho era o preconceituoso e o papa está livre desse preconceito, é preciso redefinir os azimutes?

Vou com o preconceito até ao fim, à guisa de pessoal irritação com uma seita que me tira do sério: a malta que se desdobra em mil e um esforços por aparecer na crista da onda no que à moda diz respeito. Esta malta muito fashionable não tem destes preconceitos. Dizem-se na vanguarda da moda, inventam a moda a cada passo que dão. É quando sou confrontado com modismos que são (aos meus olhos) insultos à estética, ou a exaltação da poluição visual em estado puro. Adivinho que os sapatos vermelhos do papa devem ser um ícone para os gurus da moda.

Leio como este papa suscita anticorpos entre os teólogos. Eles que teorizam deus, que se entendam nas suas dissensões. Pouco me importam as acusações ou os louvores aos papas. Todavia, não deixo passar em branco a principal crítica dos adversários do papa: acusam-no de ser enfadonhamente conservador (com o que isso supõe de afiançar o hiato, o enorme hiato, entre a igreja católica e o mundo real). Lá vêm à baila os sapatos vermelhos outra vez. Pelo contrário, há que advertir os adversários do papa, Bento XVI está – para usar o linguajar juvenil em moda – “muito à frente”.

Revirei os olhos com as fotografias do papa dos sapatos vermelhos. Haveria alguém na igreja, num aspecto que fosse, capaz de me remeter para o odioso lugar do datado conservadorismo. O papa, conservador? Está muito à frente de todos nós, os incapazes de calçar sapatos vermelhos.