7.5.10

O conto arejado


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O gato com as rosáceas em luminescência incerta, o gato espreguiçava as unhas afiadas contra o grosso, centenário tronco da árvore. Caminhava, madraço, à espera do entardecer tépido. Refugiava-se nas sombras da folhagem em suave coreografia animada pela aragem abrasadora. Olhava com indiferença quem por lá passava – com a mesma indiferença com que os humanos o olhavam. Esse era o calibre da harmonia.
Na sala, o velho arrastava a vista num livro com letras muito pequenas. Por cima e sobre a esquerda, uma ventoinha enorme rodava mecanicamente sobre si mesma. O sucedâneo do moderno ar condicionado, que ali não chegara à míngua de recursos. A ventoinha, sem parar, fabricava uma falsa frescura que não impedia que umas gotas de suor escorressem pela fronte do homem. Eram assim as tardes, o relento da velhice a anunciar a apoteose de uma vida.
Na repartição pública, estranhamente vazia para aquela hora da tarde, a senhora compunha as unhas debaixo da mesa (não fosse o despótico chefe descobri-la naqueles preparos). A amiga que habita na secretária do lado estava de férias, não havia com quem meter conversa nos minutos mortos sem ter que aturar utentes. Ultrapassada a descabida manicura, folheava as páginas de um folheto de férias apetecíveis. A máquina de calcular desmentia os sonhos – e a folha do ordenado era a castradora ceifa dos destinos (assim) impossíveis. Ao menos cavalgava nos sonhos, como se o corpo se metesse nas urdiduras do papel e fosse uma das raparigas fotografadas numa das praias que prometiam um pedaço de paraíso a beijar as águas tépidas.
O motorista de táxi, arrastando o corpo até ao telefone, abanava o leque que iludia um bocado do tórrido sol. Meteu-se no táxi, preguiçosamente deu à ignição e meteu pelas ruas ao encontro do cliente que o encomendara. Tomou nota da estranha calmaria da cidade para dia de semana àquela hora da tarde. Ao dobrar uma esquina, os olhos esbarraram numa velhinha estendida no chão. Foi em seu socorro. Ela metia os dedos pela boca dentro, esperneando todo o calor que havia tomado conta da cidade. Balbuciava um grito de dor, soltava um esgar de pânico. Ainda teve forças para disparar uns impropérios contra as adversidades que se meteram no seu caminho, a julgar pelo vernáculo seco e quase mudo. Umas crianças em calções abeiravam-se, atónitas, amedrontadas com o outro lado da vida que só experimentaram em filmes. A ambulância não demorou, já a velhinha dormia na sua inércia. O taxista não chegou a conhecer o cliente que o encomendara.
Ao longe, onde o arvoredo denso se intrometia no soalheiro dia, vagueava um casal de adolescentes namorados. Nem o suor convidado pela humidade do dia servia para que os corpos deixassem de andar abraçados. Uma enxurrada de beijos, lânguidos e demorados, ele com as mãos a escorregarem malandramente pelos quadris até se deterem no rabo, bem curvado e firme, da menina. Não havia mais ninguém no parque; e, todavia, estava por ali uma multidão a refugiar-se do sol tisnado. Nem o casal dos amantes notava a presença de quem estava presente, nem os demais se mostravam contrariados pelo enlevo arrebatador. Outra vez, como ao início, no gato de iluminadas rosáceas: a mesma indiferença de uns por todos.
Em todos os lugares, para quem isso quisesse descobrir, abria-se um frescor que interrompia o dia tórrido. Era como se uma imponente ventoinha – uma ventoinha como a da casa do velho leitor – aterrasse vinda do nada. A prestimosa ventoinha curava de alegrar os padecimentos de calor que amordaçavam o pensamento. Os outros, invejosos pela arejada condição, asilavam-se no lugarejo onde os lagartos de sangue quente nem notam a refulgência do sol. Um qualquer terreiro onde nem ao longe houvesse discernimento de sombras apaziguadoras. E o pensamento, sem a lucidez coibida pela temperatura ardente.

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