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Segreda-me ao ouvido as histórias que ninguém quer ouvir. Nem que sejam as palavras gastas. Entoa-as com uma voz que seja a antítese da melodia. Sussurra-as, ou então dispara-as com os decibéis em alta. Histórias. As de encantar, ou as que são um convite ao esgar de desprazer. Histórias vindas da algibeira pessoal, ou aquelas encontradas nas profundezas da imaginação.
Histórias feitas de gente que existe, gente que se cruzou algures nas mesmas avenidas. Ou as outras, as que recrutam protagonistas inventados, uma imensidão de figurantes de rosto imperceptível, só para fazerem número. As histórias são o manjar opíparo que nos mantém em vigilância. Arquitectam-se nas faldas dos devaneios, nos contrafortes das quimeras, decantando poemas fracassados ou prosas que se queriam escorreitas e se arqueiam no hermetismo das palavras. Que interessa se são histórias que cativam os outros se nós por elas passamos os olhos? Desde que sejam histórias, e contadas aos nossos ouvidos, retêm-se no seu fio condutor. Nacos de prosa que sedimentam um porvir.
E podem, outra vez ainda, as sintonias andar a descompasso. Desde que haja histórias e elas sejam entoadas, desde que as palavras não fiquem aprisionadas na vulgaridade dos silêncios, elas são a sua própria recompensa. Como um guião de um filme que é estranho aos demais, ininteligível; mas essa nebulosa é de uma claridade tremenda com as histórias que sussurramos. É como se houvesse apenas um idioma entendido pelos que decantam as histórias.
Pela mão das histórias que contamos, há um trivial desassombro que derrota a monotonia reinante. Dir-se-ia: um mundo por dentro do mundo, ou melhor, os mundos que quisermos dentro do mundo que aos olhos nos é dado a perceber. Arregaçamos as mangas e deitamos os braços à criatividade. Que não haja ilusões: a criatividade, como o sol, não aterra todos os dias diante dos dedos que materializam em letra de forma as histórias alimentadas desde as entranhas. E também isso não interessa. As histórias nascem de esboços. Umas vezes ganham vida própria, é como se fugissem das mãos do criador e fossem pelos caminhos por elas desejados. É quando as histórias ganham maioridade que elas mais recompensam.
Histórias, pois, e todos os dias. Para fugirmos à sensaboria da actualidade. Lambemos as feridas evitando a actualidade? Porventura. São um bálsamo para as cicatrizes que teimam em ser mostruário da actualidade cortante. Uns dirão: de que adianta desviar os olhos se a realidade continua a esbracejar, tão iníqua como deplorável, diante do corpo? Nada disso interessa. Pode ser uma anestesia, ou apenas um hipnotismo inconsequente que se derrama sobre a actualidade, remetendo-a à hibernação. As histórias encavalitam-se, rainhas supremas de tudo, construindo-se sua própria realidade.
Todos os dias, histórias. Nem que sejam banais, que por vezes a banalidade é a caução das coisas que dão sabor à existência, pelo seu flagrante contraste. Mas todos os dias, histórias. Ou caímos, vegetantes, numa paliativa forma de vida, como se das nossas pernas se soltassem raízes misturadas com o húmus molhado da madrugada, as pernas já domadas pelas raízes de uma árvores inerte. As histórias são o santuário onde encontramos os nutrientes da (como inventou Herberto Helder) “devastadora inteligência”.