3.1.11

Sofreguidão


In http://www.aceav.pt/blogs/rogerfernandes/Lists/Fotografias/RIOS/caudal.gif
Corre as partidas do mundo. As que conheces já pouca serventia têm. Vai em demanda das desconhecidas. Embebe-te nas experiências embotadas na escuridão que resgatas do fundo de um poço. Elabora sobre as incógnitas. De lá de trás, de onde sobram erros e errâncias diversas, não aprendes nada. Nada. Esse tempo é irrepetível.
Embriaga-te com os dons que a existência oferece. As cores, o sabor do vento, as gotas da chuva que refrescam o rosto, até mesmo as pedras pontiagudas dos caminhos agrestes por onde os pés arremetem. Sorve tudo como se fosse o derradeiro cálice diante de ti, não importa que néctar nele acama. Do repouso, mínimos necessários. Que o tempo vindouro é um bem sempre escasso, por maior que seja o estalão do feiticeiro que te afiança tempo de sobra até ao fim dos teus dias. E segue, imperturbável, entre os corredores apertados onde os espinhos das rosas ferem com a sua acutilância. O sangue derramado enche um cálice que dás a beber, como oferenda generosa, aos que do outrora soerguem a cabeça na episódica importunação.
Os dias que correm atrás uns dos outros são a prova viva de que os sobressaltos não podem desatar hesitações. Engalfinha-te com os braços da existência, esse polvo açambarcador com os seus aberrantes múltiplos tentáculos que asfixiam os dias que se atropelam uns nos outros, iguais uns aos outros, os dias sordidamente anestésicos. A sofreguidão, dizem, não é conselheira da lucidez. Ela dissolve a alvura da luz que irrompe na lonjura do horizonte. Dizem: é uma luz baça, como se os olhos decaíssem na miopia. Protesta contra esses anfitriões da desdita, os malfeitores que insistem com a sua muito razoável vozearia que simula, e simula apenas, ser uma voz razoável. Como se fosse um sussurro todavia ruidoso, as vozes entrando pé ante pé, quase imperceptíveis, pelos poros do ouvido até serem um insuportável zumbido que ambiciona a perenidade. Só tu podes demolir essa perenidade.
O segredo não está guardado em cofre forte. O segredo, verdade a haja, assusta o comum dos mortais. Apoquentado por convenções, pelos dizeres alheios que são a metamorfose das ignóbeis sentenças sobre os demais, muda de passeio quando nota o refúgio de onde o segredo espreita, sedutor. Mas às tentações mandam os costumes olhar de soslaio, a metódica desconfiança que ensina estultos adágios como “quando a esmola é muita o pobre desconfia”.
A pobreza, e interior, é-a dos que se amedrontam com a sofreguidão que é alimento da existência. Atemorizam-se: com os acordes melodiosos dos violinos; com a harmonia inexplicável de um quadro decomposto em sabe-se lá quantas telas; com o mar raso que convida à contemplação; com as palavras de alguém que se transformam em momentânea poesia; com os seus próprios passos desbravando estradas postas à escuras. Não queiras ser como eles, autómatos que se demitem da intensidade da existência. Quando acordares dos pesadelos em que se transformou a rotina implacável, tarde de mais. Nessa altura, sobressalto nenhum te adianta. O beijo na vida será um punhal, outro mais, que deixas cravado nas tuas próprias costas. Enquanto for tempo, ainda vais a tempo. De te entregares num amplexo farto aos braços tentaculares que estão abertos à tua espera. Dos braços que te querem ensinar as múltiplas avenidas e ruas e travessas onde os sentidos aprendem ao ritmo das doses diárias da existência embriagada que sorve, até à profundidade das mais fundas raízes, a seiva arrebatadora.

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