26.1.11

A grinalda do dilema (acto final)


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Os dias passavam e a angústia trespassava Arnaldo. As noites mal dormidas eram pasto para a cornucópia de pensamentos divergentes que o acossavam. Haveria de omitir a actividade da nova namorada do amigo? Fazia-lhe um favor, ou resvalava para uma covardia incompatível com a amizade de longa data? Pelo meio metiam-se outras interrogações que tornavam o dilema mais pungente: e se ela já não fosse meretriz de luxo? Assim como assim – reflectia, enquanto arranjava coragem para o silêncio – a cada um, o direito ao seu passado.
Mas das noites mal dormidas não tirava a lucidez partido. Como era frágil a linha que dividia as duas hipóteses. Havia alturas em que lhe apetecia fazer de conta que não sabia da actividade, por assim dizer, menos recomendável da namorada de Sebastião. (E como era sintomático que nem sequer lhe viesse à memória o nome dela, nem depois de ter ouvido Sebastião pronunciá-lo meia dúzia de vezes no almoço que tinha juntado os três.) Era assaltado por um duelo de diferentes moralidades. Ou era a moralidade que reprova a venda do corpo feminino, ou a moralidade que se abatia sobre si mesmo, a vergonha social (esse conceito usurário) de quem já experimentara esses serviços. Como odiava a moralidade, tão hipócrita como a hipocrisia que embaraçava a decisão.
Passaram-se duas semanas. As noites, que continuavam a ser mais em claro do que embebidas no sono, eram uma tortura. Estava irreconhecível. Nunca soubera o que eram insónias (sempre tivera o sono pesado). Ele, um bom garfo e já emagrecera por o apetite se ter ausentado. Começou a temer pela saúde. Tinha que tomar uma decisão. Uma decisão qualquer entre a meada que se embrulhava na embaraçosa encruzilhada.
Estava no auge das dúvidas quando, após uma noite em claro, uma decisão irrompeu com a violência da erupção de um vulcão. Decidira-se contar ao amigo. Às malvas os considerandos morais quando expusesse a fraqueza carnal que denunciasse de onde conhecia a voluptuosa namorada de Sebastião. Deixou-se tomar por uma outra forma de moralidade (e continuava a detestá-la, à moralidade, qualquer que fosse o seu timbre): estaria a trair a umbilical amizade por Sebastião se o deixasse no desconhecimento. Tomou uma resolução àquelas horas em que a alvorada se preparava para despontar. O encontro com Sebastião não passava desse dia.
Combinaram almoçar. Assim que se cumprimentaram, Sebastião perguntou se estava tudo bem, que havia notado tensão na voz de Arnaldo quando este lhe telefonara.
- Tenho uma coisa aborrecida para te contar. Andei este tempo às voltas comigo mesmo, a arranjar coragem para te falar nisto, retorquiu Arnaldo, com um ar macilento que preocupava Sebastião.
- O que vem lá? Qual é o assunto?
- A tua namorada...
- Ah! É o melhor assunto.
- Sabes...eu já a conhecia. Como te hei-de dizer isto?...Ela tem um anúncio nas páginas de jornal. A oferecer os seus serviços...estás a ver onde quero chegar?
- Eu sei. Como é que pensas que a conheci? Não és o único homem com momentos de fraqueza carnal (não é assim que lhe chamas?).
- ...
Perante a incredulidade de Arnaldo, o outro terminou a revelação:
- Talvez te desiluda. Deves estar a pensar que ela deixou a actividade. Enganas-te. Eu não tenho problemas com isso. Se gostaste do serviço prestado (e tenho a certeza que sim, tal a competência da rapariga), ela faz-te um desconto quando a requisitares outra vez.
O prato à frente de Arnaldo nem ia a meio e assim ficou. Cadavérico, sem reacção nem palavras, o resto do almoço foi de um silêncio fúnebre. Despediram-se. Sebastião temia que fosse a última vez que via o amigo. Este, agora mergulhado noutro dilema. O que fazer daquela amizade.

3 comentários:

Vanessa, a Mãe Possessa disse...

E com este desfecho me desarmou dos argumentos de ontem. Teria sido melhor nada dizer, mesmo considerando o desconto!

PVM disse...

Pelo contrário (em relação à hipótese de nada dizer): o comentário de ontem inspirou este acto final. Por antagonismo, mas inspirou.

Vanessa, a Mãe Possessa disse...

Não me fiz entender correctamente. Teria sido melhor nada dizer ao amigo de Arnaldo, considerando o desconto prometido da namorada.

Quanto ao desfecho... esse, sem dúvida, um belíssimo "twist" de limão! (risos)