14.1.11

A um metro do abismo

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Resoluto. Avançava sem medo por entre os arbustos rasos que escondiam as pedras esgaçadas. A boca secara-se só com a ideia do terreno se perder numa quebra abismal. Lá em baixo, ainda sem o ver, sentia o mar tempestuoso a esbracejar a sua fúria, as ondas majestosas despedaçando-se contra as rochas. Avançava, tão temerário como lento, no topo do promontório que encimava o cabo agreste. O vento estava a preceito, alisando os cabelos para trás, esfriando o rosto, as rosáceas esquálidas por serem esmagadas pelas constantes descargas do vento.
Teimoso. Avançava numa dissonância interior. Era como se as pernas tivessem vontade própria, emancipadas do bloqueio mental que estancaria o passo. Quanto mais o corpo arremetia pelo promontório e se revelava o som das ondas do mar a esmagarem-se nos rochedos, mais tremia num pavor todavia sossegado. Os pés arrastavam-se, lentos, tomados pelo pânico das vertigens. Naquele dia estava dominado por um obscuro desejo de espreitar o precipício. Já fora de outras vezes àquele local e estancara o passo onde as autoridades impediam a passagem com uma cerca e um aviso dissuasor.
Audaz. Hoje o aviso não o iria dissuadir. Sentia uma pulsão irrefreável para avançar até onde o risco gritava a pulmões abertos. As pernas, todavia trémulas, prosseguiam a marcha, cada vez mais próximas da cerca. Àquela hora, ainda tão madrugada, não havia ninguém por perto para o deter. Um frio arrebatador invadiu o corpo. Ao mesmo tempo, as pernas com vontade própria, sem se deterem, imprimiam o ritmo da vontade ensandecida. Não era coragem o que o movia; era uma curiosidade dir-se-ia mórbida, uma insensatez pelo risco suicidário que impelia as pernas na sua marcha imparável.
Destemido. Não parou nem quando chegou à cerca e os olhos se cruzaram pela última vez com o anúncio que proibia a passagem. Não houve uma hesitação sequer. As pernas congeminaram os movimentos mecânicos de quem trepa um obstáculo. Parou por uns instantes só para olhar para trás e comprovar a bravura. Às outras pessoas só lhes é dado ver a cerca do lado de lá. Orgulhoso com a façanha, ele que tantas vezes se convencera da sua covardia, retomou o passo rumo ao precipício. Estava determinado a conhecer os mistérios impedidos pela passagem vedada. Queria saber como se esmagam as ondas do mar no amontoado de rochas erodidas que se escondem na curvatura do precipício.
Lúcido. Avançou até faltar um metro para o abismo. Os bloqueios mentais entraram em piloto automático. Alguns calhaus resvalaram pelo precipício, ecoando uns segundos depois o seu escorregar pelo precipício abaixo até mergulharem na água espumosa do mar. Dali já conseguia espreitar a curvatura do precipício. Notava a erosão das rochas escurecidas. As pobres rochas, desprotegidas, consumiam-se com o tempo e com as constantes investidas das ondas que ali se esmagavam. Olhou no firmamento, a poente, onde o céu escuro ainda não testemunhava a alvorada que já despontava atrás das costas. A brisa agreste parecia alimento.
Rejuvenescia. Aclarava o discernimento. Umas horas antes, tomado pela raiva e pelo desespero, outras intenções se levantaram. Agora que estava a um metro do abismo amedrontou-se. O firmamento crepuscular, a imensidão do mar encapelado, as tímidas luzes das traineiras que terminavam a faina, tudo isto fez estancar o passo. Ficou ali tempo sem contar, até no poente o céu se aclarar. Quando deu conta, duas gaivotas em ruidoso chilrear acordaram-no. Estava a um metro do abismo. Assustado, apressou o regresso a um lugar seguro. 

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