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O corpo demorava-se na esplanada. Entardecia. Como parecia entardecer a vida que decidira passar em retrospectiva. Outra cerveja. A terceira. E já alguma névoa a misturar-se com os pensamentos introspectivos, metendo as manápulas no meio da lucidez. Enterrado na cadeira, olhava para o fio do horizonte indiferente a quem passava. Como se os olhos estivessem petrificados no embaciamento nostálgico dos verdes anos que resgatara às memórias.
A cabeça, num corrupio incessante, tropeçava na diferença do tempo. Da penumbra emergiam as recordações notáveis, só possíveis porque o corpo ainda não estava tisnado pelas sombras da idade. Embuchou outro golo de cerveja, sacudiu uma comichão da cabeça, olhou para a algazarra feita por meia dúzia de crianças que despenteavam o areal, e voltou aos profundos pensamentos. Os erros, as façanhas, as pessoas conhecidas, as viagens, as cidades com que aprendera a conhecer o que de si estava embotado. Amores e desamores. As gargalhadas entrecortadas por lágrimas. O lúcido ensandecimento juvenil, quando a responsabilidade era de uma espessura tão delgada. Os arrependimentos e os orgulhos pessoais. Coisas cheias de significado e outras, irrelevantes, que contudo subiam à memória.
“A vida é sacana”, balbuciou no rescaldo de um turbilhão de recordações, com um suspiro terminal. Deteve-se no diagnóstico. Temia que estivesse a ser exagerado, injusto até. Se olhasse para trás, podia avivar os queixumes? O destino (ou os deuses, ou lá o que fosse) não tinha sido uma sorte madrasta. Mas era o corpo cansado, já incapaz dos mesmos feitos de outrora, o sono que reivindicava um lugar mais demorado nas rotinas diárias, as perdas de memória que ocasionalmente o fustigavam – tudo somado fazia-o mergulhar nas catacumbas onde estavam embalsamados os verdes anos que desataram o acosso melancólico.
Amigos da mesma idade diziam-se resignados. “O imparável envelhecimento depura as fragilidades de outrora”, dissera-lhe um, dias antes, enquanto sorvia um gole de vinho tinto, imerso na certeza da afirmação enquanto os olhos se perdiam nas funduras do largo copo que o vermelho forte não deixava ver. Ou o lugar-comum que agora dizemos em aniversários: “ao menos já aqui chegámos” (como quem diz, sem todavia soletrar essas palavras: “a muitos não foi dado esse privilégio”).
A nostalgia teimava. Encomendou a quarta cerveja, os olhos cada vez mais ofuscados pela mistura do álcool e da penumbra do entardecer. Tanto recusava a resignação do entardecer do corpo como lhe doía resgatar os fragmentos cuspidos pela teimosa nostalgia. Na encruzilhada, era o dilema que mais dor causava. Ora se inclinava para a recusa do tempo, como se os verdes anos tivessem uma perenidade indesmentível. Ora caía em si, à volta do seu corpo desfigurado, os traços custosos de que a perenidade não é indesmentível.
Acertou a introspecção com algumas interrogações lapidares: de que servem os devaneios nostálgicos? Resgatam o tempo ido? Rejuvenescem o corpo cansado? Podiam ser dolorosas, as interrogações. As respostas, em forma de acalmia condescendente, eram analgésicas. Três nãos que, por uma vez, eram o oposto do niilismo. Três nãos à mão de semear, tão construtivos.
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