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Mote: aqui.
Não soubera sequer onde era o poente. Os olhos marejados pelo vento, um frio intenso que se esmagava no rosto, traduziam a angústia que o perpassava. Julgara que tinha aprendido. Julgara que os erros a montante eram o nutriente de que a renovada bússola precisava. Nada seria como o fora dantes. Agora já seria capaz de decantar a primeira demão da tinta que embota os sentimentos. Seria capaz de os depurar. Todavia, as tímidas lágrimas que o vento agreste e glacial derramava pelo rosto abaixo eram o sinal de que os planos são (como já soubera tantas vezes) um roteiro perfeito para o seu fracasso.
Estava diante de si, num promontório da existência, e notava que a insensibilidade se apoderara de tudo. Não era a planície que ambicionara. Ou talvez fosse, se a retrospectiva dos pensamentos rutilasse com nitidez. A cada passo em falso prometera que deixava de resistir aos canibais dos sentimentos. Àqueles fariseus que adejam, incansáveis, a lançar o hedonismo que desumaniza – dizem, ainda confiantes, os líricos da nobreza humana e dos edificantes sentimentos que ela destila. Uma e outra vez derrotara os cavaleiros da ímpia lividez das pessoas. Resistira ao deserto dos sentimentos.
Agora que se oferecera ao templo onde os canibais dos sentimentos preparam as suas mezinhas, cercara-o o arrependimento. Podia ser que as quedas no precipício que vêm depois da exaltação dos sentimentos selassem a vocação para a sua posterior ausência. Podia até ser que as cicatrizes abertas deixassem à mostra a impunidade com que vadiam os sacrílegos cavaleiros andantes que desensinam os sentimentos. Os ossos condoídos pelo voo livre no precipício, até o corpo beijar o solo duro, gritam a sua dor. É como se o precipício, todo aquele vazio que se embebe na mais profunda carne, fosse o lacre que sela, e com hermetismo, a janela que adestra os sentimentos.
Agora era diferente. Os canibais dos sentimentos tomaram conta de si. Não queria ser vítima dos expoentes da loucura servidos pela voragem de sentimentos. Os canibais fariam o seu serviço. Bactérias infiltradas nas veias percorrendo todo o sangue, adulterando-o. Ficaria esquálido, o sangue, uma matéria inerte servida no altar da insensibilidade. Sabia ao que ia quando a mão trémula bateu à porta do templo dos canibais dos sentimentos.
A operação de transfiguração fora demorada. Estivera anestesiado dias a fio. Um dos canibais dissera-lhe que a tarefa fora árdua. Que havia muitos nós a desfazer, nós anquilosados pela teimosia. Outros de uma resistência ímpar, sabendo que eram o último refúgio onde o sortilégio da insensibilidade perene podia ser derrotado. À medida que se desprendia do torpor do longo sono, fervia o desejo de experimentar a adulteração dos canibais dos sentimentos. Queria saber se conseguia a insensibilidade. Apressou-se na experimentação. A transfiguração fora perfeita. Aprendera uma rudeza que sempre fora estranha. Um utilitarismo que seria atroz para os parâmetros anteriores. Empedernido, nem perdia o sono entre as mágoas que deixaram de ser conhecidas. Tudo era como fora prometido. Como tinha demandado.
Contudo, naquele promontório da existência, numa esquina que o fizera resvalar num precipício inesperado, as lágrimas decantadas sopravam um outro arrependimento. Com pesar, ecoavam as preces que emprestavam mantilha a esse arrependimento. Queria saber outra vez o sabor dos sentimentos. Oxalá deixassem os canibais que estavam por dentro de si. E até as lágrimas derramadas dos olhos marejados vinham sem sal.
2 comentários:
Tanta reinvenção numa só vida!
O que nutre tamanha tenacidade? Instinto de sobrevivência?
E depois dos sentimentos, a vã glória de mandar?
Às duas primeiras perguntas, manda o protagonista dizer que não sabe dar resposta.
À terceira pergunta, responde: não, não é isso. É um deserto.
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