20.1.11

Um conto infantil


In http://fc08.deviantart.com/fs47/f/2009/209/5/4/aldeia_de_xisto_by_Ponto_Zero.jpg
Lá nas terras pedregosas do norte, numa aldeia escondida dos faróis do mundo, vivam só três crianças. O resto eram os anciãos curvados por tantos anos de amanho da terra, as suas rugas profundas o atestado dos pesadelos dos petizes. As criancinhas viviam longe das fantasias da tecnologia. Pouca televisão, e apenas os canais que dispensavam o cabo que não beijava a aldeia ou as antenas de captação do sinal por satélite proscritas pela assembleia dos chefes de família (não fossem afear casario tão harmonioso). Como nem havia computadores na aldeia, Internet era palavra desconhecida.
Dir-se-ia que as três crianças (dois rapazes e uma menina, todos à volta dos sete anos) viviam em pureza. Aprendiam o que havia a aprender na escola para onde iam ainda a madrugada deixava um demorado rasto nocturno nos dias de invernia. Entretinham-se nas brincadeiras que o foram em tempos ancestrais, na geração dos avós e bisavós dos outros meninos que vivem nas grandes cidades.
Um dia, um homem esquisito foi encontrado a vaguear pelas ruas. Trazia o nariz empinado ao alto, a cabeça esvoaçando a sua curiosidade de um lado para o outro. Tomava notas num caderno pequeno. Os aldeões, incomodados com a deambulação, seguiam-no à distância. Primeiro com os olhos. Depois mudando de lugar, quando o homem avançava nas estreitas ruelas da aldeia e ficava fora da vista. Os meninos acompanhavam quatro dos anciãos mais respeitados na aldeia, que logo foram convocados a vigiar as movimentações do intruso que descompunha a serenidade do lugarejo. O forasteiro, mal educadamente, não dirigia palavra aos aldeões. Nem um mero “bom dia”.
Ao cabo de um bom par de horas, os meninos desprenderam-se da timidez. Já não estavam assustados com as feições esquisitas e com a roupa escura e justa ao corpo do homem. Apanharam-no numa esquina da aldeia, onde a rua faz um degrau tão inclinado que os petizes ficaram num plano mais elevado, como se fossem mais altos que o longilíneo forasteiro. Começaram as perguntas, de rajada: “o que vieste cá fazer?”, “quem és tu?”, “de onde vens?”. O homem, solícito, respondeu às duas últimas. Julgava que a afabilidade e uns rebuçados distribuídos (e prontamente recusados) serviam para o esquecimento da primeira interrogação. Enganou-se. A menina repetiu a pergunta: “o que vieste cá fazer?”, e enfatizou-a, sem se deter: “por que andas a ver as casas todas?
O homem ajoelhou-se diante das crianças, notando como de ambos os lados, a pouca distância, já havia olhos curiosos em pose testemunhal.
- Vou contar um segredo. Prometem que não dizem nada a ninguém?
As crianças anuíram com a cabeça e mudaram o rosto, que a curiosidade desata outro estado de espírito. Depois de uma pausa, o homem sussurrou enquanto abria uma pasta cinzenta:
- Gostavam de viver nestas casas tão bonitas e tão cheias de cor? Lá têm tudo de que os meninos gostam.
Da pasta cinzenta caíram umas folhas estranhas, cheias de desenhos a lápis, com números encavalitados uns nos outros. Um dos meninos, mais avançado na leitura, conseguiu ler as letras maiores no cabeçalho de uma das folhas: “barragem – projecto”. Gritou para o avô que estava a meia dúzia de metros:
- Avô, avô, este homem vem da parte dos da barragem. Vamos-lhe bater?
Quando o engenheiro cheio de instrução conseguiu sair da aldeia com umas nódoas negras espalhadas pelo corpo e uns galos na cabeça depois de tanta paulada, mais o inchaço na mão direita por causa da ferradela de um dos rapazes, percebeu que nem sempre são as crianças que jogam o papel do ingénuo.
(Em Valence, França)

2 comentários:

Anónimo disse...

Nem em França és capaz de largar Portugal!
Espero que voltes a tempo de votar!

PVM disse...

Isto foi um sonho que me deu (ou, diria, um pesadelo?).
Volto a tempo de votar. Mas nem assim lá vou.