11.1.11

A apanhar bonés


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Era como se tivesse perdido a bússola interior. Errava pelas ruas, andava e andava incessantemente, como se fosse um fio sem prumo. Apenas imerso em emaranhados pensamentos. Assustava quem por ele passava por causa daquela aparência lunática. Fugia das pessoas. Parecia um cão vadio sempre desconfiado dos humanos em redor. Os outros, por causa da andrajosa figura que era, evitavam-no. Parecia o cão sarnento que ameaça com doença contagiosa. Tanto era ele que se amedrontava com a presença dos outros, como os outros que o esconjuravam.
Em momentos de fraqueza, contrariava os instintos. Havia um íman que o empurrava para perto de gente. A mesma gente que o escorraçava com os olhos. A culpa seria dos andrajos, do ar desarrumado, da aparência lunática – aqueles olhos esbugalhados que lhe emprestavam um ensandecimento atroz. As cicatrizes nas mãos encardidas, uma outra profunda que cortava em duas partes a bochecha direita, o odor nauseabundo, a ausente higiene e o excesso de vinho, estorvavam a gente de que se aproximava. Não queria sentir gente, mas uma pulsão sem controlo empurrava as pernas para os lugares pejados onde as pessoas se atafulhavam e passavam na indiferença recíproca.
A indiferença só o não era em relação a ele. Distinguia-se. Pelas más razões. As que faziam as pessoas desligar-se da indiferença a que votam os anónimos que são todos os que vagueiam pelas avenidas da normalidade. Afinal, o homem queria que as pessoas fugissem dele, que mudassem a trajectória no passeio. Não queriam proximidade com alguém tão desassisado. Não fosse dar-se o contágio – do ensandecimento, da ausente higiene, daqueles olhos raiados por um sangue raivoso que o tornavam semelhante a um cão esfaimado.
Percorria a rua movimentada para trás e para a frente, horas a fio. Desistia ao anoitecer, quando todo o bulício recolhia a casa e ele se perdia no meio da rua, agora deserta. Sentou-se à soleira de uma ourivesaria. Arqueando o corpo sobre os joelhos, mordiscou os dedos, recuando as unhas até onde se julgara o sabugo sem poder estar à mostra. Desfez a curvatura do corpo e olhou no firmamento. Os olhos vidrados, imperturbáveis à passagem dos raros e tardios transeuntes, navegavam no nada. Projectavam-se na vacuidade distante, como se estivessem em linha recta com o ponto cardeal além dos olhos, o oeste que só terminava onde o mar chegava às praias americanas.
A noite que caíra trouxe a angústia do entardecer: o relento como companheiro do sono. E enquanto a rua reconquistava movimento a expensas de gente já jantada em passeio higiénico, o velho ergueu o corpo e meteu as pernas ao caminho até ao escondido lugar onde era distribuída sopa quente. A barba rala aparava os restos gordurosos da sopa. Uma voluntária ofereceu um guardanapo, prontamente recusado. A camisola imunda e rota tinha melhor serventia. Ao menos, à noite, quando o estômago pedia alimento outra vez, chegava o punho da camisola ao nariz só para enganar a fome. E caía no sono até ser manhã, quando os primeiros apressados para o bulício calcassem ruidosamente o chão molhado pela chuva nocturna.
O homem demorava-se nos dias repetitivos, repletos de desesperança. Os olhos vidrados eram o mostruário do seu desprendimento. Dir-se-ia, um autómato tão presente com a sua andrajosa figura como ausente a cabeça que fervilhava nos meandros de um mundo imaginado. Tão quimérico. Tão belo.

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