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O Arnaldo não conseguia dormir há um par de noites. Era tanta a angústia que sentia uma pressão no peito de cada vez que uma golfada de ar entrava nos pulmões. Os amigos, vendo as notórias olheiras e o ar abatido, perguntavam pela razão. Refugiava-se no silêncio, ou mudava de assunto. Até o apetite (e logo o apetite!) perdera. Nos últimos dias esquecera-se de almoçar duas vezes.
Andava assoberbado por um terrível dilema. O seu grande amigo Sebastião tinha uma nova namorada. Antes das apresentações, o Sebastião, todo ufano, prometera uma namorada bombástica. Dizia-lhe: “vais ver, é um mulherão. Desta vez saiu-me a sorte grande”. Arnaldo, amigo incondicional dos poucos amigos do peito, estava exultante e curioso. Um certo dia, Sebastião telefonou a meio da manhã:
- Tens planos para o almoço de hoje?
- Não. Vou almoçar contigo?
- Nesse caso vais. Somos três. A minha namorada também vai. Quero que a conheças.
Marcaram local e hora. Como era hábito, o Arnaldo chegaria à hora e o Sebastião pediria desculpas pelo atraso sempre com culpas alheias. Desta vez a pontualidade do Arnaldo foi derrotada pela chegada antecipada do Sebastião e da nova namorada. Ao chegar ao restaurante, vendo os vultos de Sebastião e da namorada à distância, parou por uns instantes. A nova namorada do amigo tinha uma estampa invejável. Cabelos longos, escuros. Uma mulher alta. Notou as suas curvas acentuadas, as pernas reluzentes cruzadas em notória transpiração lúbrica. Sebastião ouvia-a falar, olhava-a com enlevo. Nunca vira tamanha expressão de encantamento no amigo nos longos anos de cumplicidade que levavam.
Aproximou-se da mesa. Apresentações feitas. A mulher, de uma beleza insinuante, Catarina era o seu nome, desfez-se em simpatias. Devia estar instruída pelo Sebastião (ou, não o estando, era inteligente): aquele era o seu melhor amigo. Arnaldo não conteve o interior abalo telúrico que o deixou lívido.
- O que tens, estás doente?, indagou Sebastião, atónito.
- Nada de especial. Ando com a tensão baixa. Ao sair do carro tive uma tontura. Deve ser por isso que estou pálido.
Não era por isso. Após uns curtos segundos de dúvida, Arnaldo não demorou a identificar a namorada do amigo. Umas semanas antes, num (por ele admitido) momento de fraqueza carnal, requisitara os serviços de uma acompanhante. Daquelas que se apregoam através de anúncios que enxameiam as páginas dos jornais de grande circulação. Era ela. Pelo seu à vontade, ela não o reconhecera (ele seriam tantos clientes...). Ou, tão dissimulada, mantivera a compostura para não decepcionar o (podê-lo-ia assim reputar?) namorado.
O almoço foi esquisito. A jovialidade de Sebastião, a babar orgulho pela mulheraça que engatara, contrastava com as poucas palavras de Arnaldo. Percebendo que podia causar mau estar, a certa altura desculpou-se:
- Não estou nos meus dias. Até o almoço não me está a cair bem.
- Isso é mesmo estranho em ti, tão bom garfo que és.
Não teve cabeça para o trabalho no resto do dia. Os pensamentos absorvidos pelo dilema. Haveria de confessar ao amigo que a esbelta namorada era uma luxuosa rapariga de programa? Estava sem saber o que fazer. Avisava Sebastião, anunciando a sua fraqueza carnal? Ou escondia-a, por vergonha, e deixava o grande amigo cair numa cilada?
1 comentário:
Numa situação dessas, eu contaria. Sim, mesmo contribuindo para um eventual incremento nas estatísticas de crimes passionais ou até mesmo correndo o risco de perder um bom amigo.
Enquanto escrevo, tenho algo aqui a dizer-me que ela podia efectivamente estar apaixonada (certos ofícios não castram o sexo, nem o coração, por muito que o apregoem), a aguardar estalar-lhe a notícia.
Estas novas nunca têm hora certa para anúncio, são como injectáveis de penicilina, que espalham veneno dorido (mas não corrosivo) pelo corpo.
Para amenizar o inconsolável, começaria a conversa com um "apanhaste-me completamente desprevenido! podias ter-me avisado! Não te contou? então esquece, quando achar oportuno, ela dar-te-à a notícia".
Talvez um pouco cobarde... humano.
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