4.1.11

Um parafuso a menos


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A miúda tresloucada corresponde às tropelias da trupe sentada à mesa do café. Depois de beber uma cerveja preta de um gole só, atafulhou a garganta com uma dose cavalar de mostarda. Fora desafiada pelos pândegos. Pegou na mostarda e escarrapachou o boião, jorrando uma abundante fileira de mostarda pela goela abaixo.
Terminada a função, levantou-se cambaleante e fez uma vénia como se estivesse a festejar a pose triunfante. Os parceiros riam sem parar, ruidosamente. Meia ébria, meia drogada, caiu redonda na cadeira, os braços desamparados e a cabeça subitamente pesada recolhendo-se na mesa imunda. Adormeceu. Conservando aquele sorriso tonto que trazia consigo em plena função circense.
Os parceiros, quase tão ébrios ou drogados como ela, continuavam com o circo. Nem se importam que a palhaça estivesse arrumada. Um tomou em mãos meia dúzia de guardanapos embebendo-os no restolho dos cafés e num vestígio de bagaço. Completou o empastelado com as migalhas dos pães de cachorro. Para gáudio da pandilha, a mixórdia foi pespegada no rosto inerte da rapariga. Outro levantou-se de supetão e, piscando o olho a um companheiro agachou-se junto da miúda mergulhada no seu profundo sono. Com vagar, meteu a mão junto ao pescoço desabotoando um a um os botões da camisa, nem se importando com uma enorme nódoa de mostarda que desbotava um dos quadrados da camisa de flanela. Os outros desaceleraram a algazarra. À medida que os botões desapertados se achegavam ao peito escondido atrás do soutien a paródia era substituída por um silêncio de excitação. A mão marota pôs um seio cá fora. Alguns dos rapazes estavam boquiabertos, a baba a soltar-se a rodos.
O café estava cheio e toda a gente assistia, impávida, ao circo montado pela pandilha. Nem os empregados de mesa se insurgiam. Já sabiam ao que iam se quisessem pôr ordem na balbúrdia. Esperava-os uma zaragata que frequentes vezes terminava com visita policial, tão nociva para a imagem do estabelecimento comercial. O patrão ordenara que ninguém se metesse com os desordeiros. Desordem por desordem, ela que se confinasse aos arruaceiros. No meio da complacência habitual dos clientes habituais, um homem franzino levantou-se da cadeira. Dirigiu-se para a confusão em passo vagaroso. Pegou pelo colarinho o rapaz que já tinha as duas mãos metidas nos seios da rapariga. Um cliente levantou-se numa mesa vizinha, soltando entre dentes: “afinal há gente ainda mais desparafusada”.
E antes que os sete rapazes desordeiros esboçassem uma reacção de violência, já o atrevido rapaz segurado pelo colarinho tinha uma pistola apontada à cabeça. O homem podia ser franzino, mas tinha uma coragem inversamente proporcional. Para que não sobrassem dúvidas, destravou a pistola junto ao ouvido do energúmeno. Sussurrou-lhe: “diz aos teus amigos que estejam quietos. Sabes o que significa este barulho da arma, não sabes?” Um a um, os rapazes saíram do estabelecimento. O último virou-se para trás e ajuramentou vingança célere. A rapariga continuava inerte sobre a mesa imunda.
O homem franzino pediu dois copos de água. Despejou-os na cabeça da rapariga, que acordou sobressaltada e voltou a cair no sono. E enquanto o empregado de mesa, preocupado, aconselhava o homem franzino a não se demorar no café (“não tarda muito, tem aí à porta uma pandilha numerosa para acertar contas consigo”), o homem era todo olhos para o estado pré-comatoso da rapariga. Enquanto telefonava pedindo uma ambulância, retorquiu ao insistente empregado de mesa: “esteja lá descansado, homem, que há balas que cheguem. Não importa quantos eles sejam”.
O empregado de mesa repetiu: “este é que tem um grande parafuso a menos”.

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