19.1.11

Crónica bem disposta


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(Será dos ares pré-alpinos – que eles não estão longe daqui – ou da companhia dos bons amigos. Não há crispação que amedronte estado de espírito tão leve. Nem motivo que escureça ares tão aliviados. Às vezes, estar longe de casa é terapêutico.)
Esta é uma crónica bem disposta. Ou pretende sê-lo (que uma coisa é a intenção, outra bem diferente é se a intenção se traduziu em coisa palpável, com merecimento). Lembro-me de disparates. Alheios e sobretudo pessoais. Lembro-me de piadas que ficaram emolduradas num recanto da memória. Lembro-me daqueles momentos inesquecíveis, os que fizeram brotar das entranhas um pedaço de amadurecimento. E não me apetece lembrar de todo o seu contrário. Chame-se-lhe estado de negação. Temporário que seja, mas estado de negação. Ele próprio terapêutico.
Está é a crónica de um homem jovial, imaginado, que carregava um sorriso perene. Não via maldade em coisa nenhuma, em acção nenhuma praticada por gente. Tudo era pontuado por uma bondade intrínseca. O homem acreditava que todos os dias eram um espelho bonançoso da sua repleta interioridade. Uma fé inexcedível na capacidade da espécie humana para a positividade de todas as coisas. Mesmo das más, das que trazem um selo dramático – que essas, na maior parte das vezes, só são melodramas. Uma cortesia infindável acompanhava-o por onde fosse. Um cavalheiro para as senhoras (o que já lhe valera contrariedades espumadas por feministas enraivecidas). Era a antítese dos mestres na desconfiança que abundavam à sua volta.
Faltava saber se era tudo isto por genuína têmpera ou por uma vontade indomável de querer ser diferente. Os desconfiados por natureza desconfiavam das suas boas intenções. Achavam-no um embuste, um actor que merecia ser premiado pelos dotes de dissimulação. Desconfiavam, até, que fosse a pessoa menos confiável de todas. Por não conhecerem ninguém, na roda do seu mundo particular, tão desapaixonadamente optimista, tão crente na bonomia da espécie humana. Só podia ser um embuste – insistiam, antes de fatalmente o vilipendiarem, os apoderados da desconfiança que transitavam pelos lamacentos carris do cepticismo.
Apedrejado, escorraçado como um cão sarnento, o homem persistia. Alguns, misturando desdém com comiseração, julgavam que ele não se desprendera da imberbe ingenuidade. O homem passava por tudo isto com indiferença. Sem se mover, um milímetro que fosse, como se as facas que caíam em cima dele não fossem cortantes. Regressava aos que o apoucaram como se nada tivesse acontecido. Com o mesmo sorriso, a mesma predisposição para o bom trato, a mesma confiança que não parecia tingida pela desconsideração. Os outros ficavam perplexos, desarmados. Interrogavam-se: como era possível o homem dar o lombo outra vez, o mesmo lombo que tinha sido severamente castigado ainda ontem?
Uns seguidores de uma religião qualquer, minoritária, saíram da toca. Não se sabia como tinham travado conhecimento com o homem. Ao início, ficaram tomados pela mesma perplexidade que se abatera sobre os algozes daquele homem. Tinha que haver um outro ângulo para espreitar o caso – acreditavam, nunca desistindo de um messias qualquer que viesse salvar um mundo no limiar da desesperança. O homem era a reincarnação de Cristo. O que foram fazer! O homem transfigurou-se. Sentindo-se insultado com a comparação (ou pior: que aquela seita acreditasse que ele reincarnava o Cristo de antanho), embebeu-se de tudo o que era o seu oposto. Encolerizou-se com a força de mil Satanás.
E os prosélitos que à força nele viam o prometido messias foram esbulhados pelo demónio em pessoa.
(Em Valence, França)

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