30.11.11

Passos trocados


In http://fotos.sapo.pt/3GIswjwIMNdELoTHsApA/
We miss each other our dreams
As redundâncias da carne, os afetos metidos no olvido, as lágrimas lambidas à face da pele, os olhos embotados pela carnificina das emoções. Uma correria. Contra o tempo, como se o tempo fosse um corcel abandonado, selvagem, correndo furiosamente pelos prados fora. As bússolas em tirocínios de artesãos diferentes, tão díspares os azimutes para onde apontavam. Reféns do tempo, as mãos dadas pareciam uma prece que limava as arestas até já tudo se ter desgastado. Por mais que as palavras viessem tingidas de todas as belezas, por mais que parecesse que os pés devoravam o chão em uníssono, fazendo-o seu altar privativo, o rasto deixado para trás insinuava uma ilusão que embaciava os olhos.
Os dias de glória teriam sido uma quimera. Houve dias que amanheceram sombrios, mostrando um rosto taciturno. Dias que afivelaram fantasmas que fundeavam no pescoço com o bafo dos temíveis punhais. E por mais que as vontades abreviassem o passo aos fantasmas, eles subiam numa espessura carnal que golpeava as quimeras já feitas. E elas ruíam em silêncio, as pedras esboroando-se no chão atapetado de sonhos. Os fantasmas foram ao osso dos sonhos. Descarnaram os sonhos até ficar à mostra a carne viva já separada do osso e um lago de sangue onde fermentavam as lágrimas escondidas. Os pés pareciam teimar na sincronia. Tanta era a vontade de iludir os desandados compêndios. Os fantasmas fizeram o resto do serviço.
Foi então que os sonhos subiram à superfície numa arritmia angustiante. As melodias embaraçavam-se em ruídos perturbantes, os punhais cravados bem fundo na carne tratando do que ainda faltava sangrar. Os sonhos com apogeus desiguais. A plateia onde estavam os espetadores era um lugar frio, as emoções contrastadas no fiel do que se dizia e do que se sentia. Um dia, os olhos fechados já não chegavam para esboçar a harmonia de um caminho. A penumbra dos olhos fechados sussurrou que os passos estavam trocados. 

29.11.11

Rendição


In http://thumbs.dreamstime.com/thumblarge_580/1296983867RmoFnA.jpg
Paninhos quentes em vez de facas afiadas. Diziam-lhe: não alimentes o afogueamento de ti em esperas inúteis, os dias adiados um atrás do outro como se uma qualquer alvorada desatasse uma solução inesperada. Paninhos quentes, pois. Para o envelhecimento precoce não espreitar à primeira rima quebrada.
Os conflagrações roubam anos de vida – dizia-lhe com a voz suave que, todavia, podia esconder promessas ocultas. Desmembrou-se toda a desconfiança diante de si. E se aquelas palavras balsâmicas fossem uma armadilha? E se estivesse a ser hipnotizado para capitular? A cilada podia não ser a intenção. Mas a desconfiança em redor, amadurecida com os sucessivos agravos em que caíra, articulava por dentro. E, todavia, pesavam aquelas palavras sussurradas ao ouvido enquanto os olhos marejavam. Pesavam à hora do deitar, quando uma insónia tomou o lugar do sono mercê da proposta de rendição que se insinuara.
Sobrava o orgulho. A ausente vontade de dar o braço a torcer. Nem que a perpetuação dos sobressaltos desfiasse o tempo, o tempo já em demasia, deitado fora. O orgulho, o maldito orgulho, inerte no firmamento das intenções. Era um castelo pétreo, as ameias tão altas que nem admitiam o olhar dos curiosos. As pedras cheias de musgo impediam a travessia. De repente, um feixe de luz entaramelava-se numa reentrância entre duas pesadas pedras montadas na muralha. A teimosia haveria de ceder numa das pontas. De tanto esticada, a corda era uma frágil deposição de si mesma. Não era difícil desensarilhar os nós sobrantes. O feixe de luz ecoava numa paisagem mental: e se a rendição fosse o segredo destapado pela última ponta depois de desembaraçada do seu nó final?
O orgulho, impenitente, continuava a ferver protestos com uma inflamação que incandescia. Era como se fosse uma frágil embarcação nos revolvidos braços de ondas tumultuosas que esbarravam umas contra as outras. O palco era medonho. E as ideias, esportuladas em dois hemisférios, demoravam a repousar num dos regaços. Mas a rendição já não era uma impossibilidade. Só faltava que as fortificadas muralhas do orgulho cedessem.

28.11.11

Bem entendido


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj5b33JWKV_X1FQLe6OA4v6YIAWDBMFWkcIo4UFRfvvfz-yQZ2SClhyphenhyphenE6m-bOyQUXJJBSMpRw-G2dWphnuY6lh-gVhT2-9rnI6oraluUxhnOUIjta7oi8MRppha3H1-mD5XPfNE/s400/Megafone.jpg
Quem falou de mal entendido? Quem falou de equívocos, palavras mal percebidas, palavras ditas à toa?
Os mal entendidos são uma máscara à volta de um rosto desfeado para iludir a feiura. São tendidos pacientemente, as sucessivas camadas puxando lustro a uma linguagem que faria inveja às mesurices dos diplomatas. Qual é a serventia de um mal entendido? Nenhuma. Corrigenda: úlceras, noites de insónia, cabelos grisalhos que se amontoam, rugas que envelhecem fora do tempo, impaciência. Um sorriso que se desaprende. Os sedimentos que abençoam um turbilhão incorrigível de palavras malditas, as palavras mal ditas, sufocam as bênçãos atrás das maldições que se ajuramentam.
Só há mal entendidos sequazes. As palavras desnudam-se, ficam frias à frente da boca que as diz, gravitam frias ainda nos ouvidos de quem as escuta. Desprovidas de máscaras, mostrando tudo o que tem de ser mostrado. As palavras assim entoadas são ditosas. Quando as arestas são limadas com o desassombro da lhaneza, quem pode falar de mal entendidos? Tudo renasce numa órbita cheia de luz, as nuvens maceradas no azedume sopradas para latitudes à distância pelos ventos propícios.
Tecem-se as urdiduras nos contrafortes dos mal entendidos. Os bem entendidos são um eflúvio. Onde antes empestava o coalho das ideias infetadas por fígados azedados, florescem, mercê da sapiência dos bem entendidos, frondosas flores que deixam um rasto de perfume. Os dias amanhecem com a claridade, os rostos das pessoas entram pelos olhos com sorrisos abundantes. As palavras são melopeias que embalam para a gratificante recompensa dos dias – um sono embebido no sossego.
Quem pode falar de mal entendidos se as palavras se desapossaram das ambiguidades, dos segundos sentidos, das táticas que congeminam ardilosas ciladas, da hipocrisia, da tacanhez misturada com sorumbática diplomacia? A nudez das palavras é o esteio dos bem entendidos. Saibam, ou queiram, as vontades libertar os freios que as acorrentam à teima dos mal entendidos.

25.11.11

Do tempo sem emenda


In http://thumbs.dreamstime.com/thumblarge_552/1288637073dsp6XQ.jpg
Podes andar à volta com as cores, virar as palavras do avesso, abrir e fechar as costuras das cicatrizes. Podes lamber os poros dos dias que virão. Podes atar as pontas aos tempos diferentes, colá-los num horizonte homogéneo que resgata as vidraças estilhaçadas de onde se adivinha um esboço das que se hão de esboroar nalgum dia pedregoso. Convocas semelhanças entre tempos diferentes e revolves a poeira de um banco sórdido. O banco onde um réu se há de sentar. O réu acusado pelo tempo sem emenda.
Desse tempo sabes o que o involuntário réu contou. Com a audácia da honestidade. Às vezes era preferível engolir as palavras, remetê-las aos silêncios comprometedores. Fazer de conta que não há tempo dobrado atrás das costas. Era como se tudo contasse a partir daquele momento, uma folha em branco onde se iam amontoando as palavras inventadas na altura. Mas a ingenuidade, ou o desassossego do tempo que não tem emenda, amarelecem a folha amarrotada. As palavras que lá se depõem trazem as impurezas de outrora. Os equívocos, esses, são o corrosivo lastro a pender sobre qualquer porvir.
À noite, quando o silêncio amedronta e o sono se adia na penumbra dos pensamentos obstinados, as ondas vagarosas esbarram umas nas outras. Soltam-se faíscas de espuma que segredam deduções contaminadas. Irrompe uma só certeza – uma entre o imenso mar de incertezas: a maior das inutilidades é o arrependimento que a ausente lucidez quiser fermentar.
O tempo sem emenda não se emenda. A mácula que se abate sobre o réu do tempo sem emenda é uma tremenda injustiça. Um ultraje. O tempo pretérito não se renova. E o réu não é o tempo sem emenda que deixou em forma de rasto. Nem é réu de nada. O que já não tem emenda é um tempo irrepetível.

24.11.11

Geriatria ninja


In http://g1.globo.com/Noticias/PlanetaBizarro/foto/0,,19702548-FMM,00.jpg
Estão a ver os velhinhos que têm sido atacados com mais frequência por assaltantes que se aproveitam das suas fragilidades? Assisti na televisão (enquanto o programa sanhudo de “entretenimento” acompanhava o meu almoço) a uma agremiação de brutamontes que se dispõe a treinar a terceira idade nos rudimentos da autodefesa pessoal. Para pôr os meliantes a léguas.
A potencial gatunagem que estivesse a ver o programa vai pensar duas vezes antes de atacar covardemente os já não desprotegidos idosos. Não se vá dar o caso de saírem com o rabo entre as pernas e as costas derreadas pela humilhação de serem desfeiteados por velhinhos que mal se aguentam em pé. De caminho, estes atentos meliantes terão passado a palavra aos outros da confraria, os que não vêm estes programas de televisão e os que labutam pela noite dentro e àquela hora ainda estavam abraçados aos lençóis.
Fiquei impressionado com a demonstração do curso de autodefesa. Tínhamos um brutamontes a fazer de gatuno, empunhando ora uma navalha, ora uma pistola. E outro valentemente no papel de velhinho já sem a desproteção da geriátrica idade. O protótipo de gatuno, naquele ar manso com que os que fazem de maus abordam as vítimas nas simulações policiais, foi dominado em dois tempos pelo que fazia de velhinho. Era um farsante, o meliante mal amanhado. Com aquele corpanzil, a avançar temerário e com a arma empunhada como se estivesse impotente e depois a ser derrubado pela enorme destreza física do que fazia as vezes de velhinho.
Como todos sabemos, os mais idosos estão na pujança física e atingem os píncaros da lucidez. E todos adivinhamos que os velhinhos cheios de artroses ou reumatismo ou outro qualquer padecimento próprio da idade conseguem reagir com a destreza física de quem desferia violentos e certeiros pontapés que deixavam de rastos o gorila que fazia de meliante.
Ah, como é encantador o mundo faz de conta!

23.11.11

As sobras das palavras vãs


In http://www.tudosobreplantas.net/wp-content/uploads/2009/02/mezinhas-para-dores-ouvido.jpg
No mesmo dia: um elogio que fez corar; e um sussurro ao ouvido que trouxe palavras ditas por outros, palavras que depuseram uma coroa pungente. Palavras ainda por cima infundamentadas. E o que fez o pensamento? Longamente debater-se nas palavras do incómodo. Já sabia que os elogios eram outro incómodo. Um embaraço talvez explicado pela irremediável timidez, ou porque os expoentes de narcisismo que se afadigam pela visibilidade geral o exasperam. Mas naquele dia as elogiosas palavras logo foram arquivadas na irrelevância quando soaram as palavras com sabor a pessoal desprazer, o amesquinhado julgamento digno de coscuvilheiras que só sabem curar dos interstícios da vida alheia.
Quando houve mercê de alguma acalmia e resgatou a lucidez, percebeu a aleivosia a si mesmo. Não seria preciso beijar os contrafortes do narcisismo – estava convencido, desde os alicerces que amparavam a sua verticalidade, que de muitos privados vícios o egocentrismo não lhe era apontado. Talvez fosse esse o mal. Porventura devia descobrir os segredos que ensinassem a olhar demoradamente para o umbigo. Para aprender a dar valor a si mesmo, desvalorizando, de uma vez por todas, as imagens de si projetadas por outros.
E o mal maior é que se fartava de pronunciar diagnósticos que, contudo, não se reviam no comportamento. Proclamava que os outros eram indiferentes. Na hora H, as palavras desconfortáveis que os outros de si diziam ecoavam com punhais fundamente cravados na carne, ensanguentando-o demoradamente.
Havia uma higiene mental inscrita na rota das promessas vindouras: aprenderia a afogar a carestia do incómodo semeado pelos demais que não tinham serventia. Aprenderia a acomodar num sótão escuro e inacessível essas palavras vãs por alguém sussurradas ao ouvido. Ele há tantas coisas mais úteis, palavras emproadas no prazer dos sentidos, e a certeza de que por muitos que sejam os anos da existência eles ecoam a injusta sentença divina (caso os houvesse, deuses) de abandonar a sempre tão curta existência ao desaproveitamento das palavras sem merecimento.