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Se
calhar é por hoje calhar um dia de tripla capicua (é onze no dia, no mês e no
ano) – com elevada probabilidade de assombrosas exegeses cabalísticas virem à superfície. O mito urbano de outrora, um
das catacumbas salazaristas, era um embuste. Afinal os comunistas não comem
criancinhas ao pequeno-almoço. A antropofagia está algures: o boçal e
esquizofrénico homem da banca dos jornais, que faz uma perninha no táxi ao
anoitecer, (veio a saber-se agora) entretinha-se a comer camaradas que
perseguia desde que saíam das instalações locais do partido comunista.
O
homem boçal tinha pinta de psicopata (pode-se dizê-lo agora que os prognósticos
a posteriori são validados). Os olhos encovados, o rosto sorumbático, a
antipatia genética, a pele macilenta e as mãos pesadas, a dentição cheia de
falhas e de carência de tratamento, as roupas folclóricas e a aparência
desajeitada, os monossílabos com que respondia a quem lhe aparecia como cliente:
eram estes os sinais de uma patologia iminente.
Sabe-se
agora, o homem era doente por comunistas. Não o fazia por especial gosto (disse
às autoridades que já experimentara não comunistas e que eram mais saborosos).
Especializara-se na caça a comunistas e, em sua defesa, jurou que eram carne
mais dura e acidulada. Desparafusado pela demência, berrou com indignação: “sou credor da república. Faço um sacrifício
por ela. Estes comunas são quase intragáveis. Com os meus préstimos, vou
livrando a sociedade da peste vermelha.”
Os
polícias que o interrogavam na esquadra estavam atónitos. Chamaram um psicólogo
e um psiquiatra, tinham de ser acolitados por peritos que decifrassem a
demência. Um deles ensaiou uma explicação da normalidade. Disse-lhe que os
comunistas locais não vinham acusados de crime algum. O homem, cego pela
demência, cuspiu com ferocidade: “o presidente
deve-me condecoração no 10 de junho. Telefonem-lhe para que vos ordene que me
soltem.”
Na
cadeia, todos se impressionavam com a destreza do homem boçal. As paredes da cela
estavam cheias de bustos de eminentes comunistas (vivos ou já desaparecidos).
Em todos, a forca à volta do pescoço. Era a sua peculiar maneira de imaginar
que continuava a comer comunistas.
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