24.7.14

À fonte dos sarilhos


Unknown Mortal Orchestra, "So Good at Being in Trouble", in https://www.youtube.com/watch?v=PERf5un2nC0
Era repasto ao pequeno-almoço: um copo da água recolhida na fonte dos sarilhos. Não parecia aprender com o tempo passado, com os sobressaltos fermentados em sarilhos incessantes. Era na companhia dos sarilhos que medrava os sentimentos. Fora deles, era como se tudo fosse uma paisagem árida e o tempo fosse uma cautela penosa. Não queria a monotonia da normalidade. Já nem curava de entender por que a imensa maioria tinha sede de normalidade; os outros podiam ser como bem entendessem. Mas não admitia que o julgassem pelas bitolas que escolhiam suas, pois ele vogava por outra diferente.
O mau feitio assoberbava os sarilhos. Fazia de propósito: era rude no trato, humilhava quem tinha a ousadia de o desafiar, era violento se alguém batesse o pé, não admitia rebeldia maior do que a sua. Provocador nato. Tantas vezes pegou de caras batalhas espúrias, tantas vezes soprou para dentro do copo só para fazer de uma gota transbordante uma tempestade desatada. Tantas vezes insultou gente e foi insultado. Pois só num estado febril admitia levar os dias sem que fossem colonizados por uma monotonia impante.
Um dia acordou diferente. Perguntou se não seria tempo para deixar as cicatrizes ganhar madurez. Se não tinha chegado a altura para deixar de arregimentar cláusulas fátuas com o propósito de se deitar furiosamente às fuças de quem fosse oponente. Via os cabelos brancos quando se fitava ao espelho pela alvorada. Não seriam compatíveis, tais cabelos, com a agressividade que tirava o freio à mansidão que o ensandecia. Mas talvez estivessem as fronteiras a carecer de nova ordem. As importunações eram carestia implacável, um rosário de sobressaltos ganhando espessura, amarrado os nós do envelhecimento. Não queria continuar a dar com os ossos em esquadras depois de um pleito mal acabado. Não queria dar de caras com adversários mal encarados em tribunal, incapazes de admitir a humilhação de uma derrota numa refrega em que os corpos foram usados.
Estava convencido que não adiantava adiar o envelhecimento. Não conseguiu conviver muito tempo com o propósito. Era um corpo estranho invadindo-o por dentro. À primeira oportunidade, tirou as medidas à noite e fez-se aos problemas. Acordou dorido, dois dentes partidos, um hematoma visível na testa, talvez uma costela fraturada, tantas as dores por ali. E sorriu. Com o sorriso ensandecido de quem se alimenta de sarilhos.

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