Unknown Mortal Orchestra, "So Good at Being in Trouble", in https://www.youtube.com/watch?v=PERf5un2nC0
Era repasto ao pequeno-almoço: um copo da
água recolhida na fonte dos sarilhos. Não parecia aprender com o tempo passado,
com os sobressaltos fermentados em sarilhos incessantes. Era na companhia dos
sarilhos que medrava os sentimentos. Fora deles, era como se tudo fosse uma
paisagem árida e o tempo fosse uma cautela penosa. Não queria a monotonia da
normalidade. Já nem curava de entender por que a imensa maioria tinha sede de
normalidade; os outros podiam ser como bem entendessem. Mas não admitia que o
julgassem pelas bitolas que escolhiam suas, pois ele vogava por outra
diferente.
O mau feitio assoberbava os sarilhos.
Fazia de propósito: era rude no trato, humilhava quem tinha a ousadia de o
desafiar, era violento se alguém batesse o pé, não admitia rebeldia maior do
que a sua. Provocador nato. Tantas vezes pegou de caras batalhas espúrias,
tantas vezes soprou para dentro do copo só para fazer de uma gota transbordante
uma tempestade desatada. Tantas vezes insultou gente e foi insultado. Pois só num
estado febril admitia levar os dias sem que fossem colonizados por uma
monotonia impante.
Um dia acordou diferente. Perguntou se
não seria tempo para deixar as cicatrizes ganhar madurez. Se não tinha chegado
a altura para deixar de arregimentar cláusulas fátuas com o propósito de se
deitar furiosamente às fuças de quem fosse oponente. Via os cabelos brancos
quando se fitava ao espelho pela alvorada. Não seriam compatíveis, tais
cabelos, com a agressividade que tirava o freio à mansidão que o ensandecia.
Mas talvez estivessem as fronteiras a carecer de nova ordem. As importunações
eram carestia implacável, um rosário de sobressaltos ganhando espessura, amarrado
os nós do envelhecimento. Não queria continuar a dar com os ossos em esquadras
depois de um pleito mal acabado. Não queria dar de caras com adversários mal
encarados em tribunal, incapazes de admitir a humilhação de uma derrota numa
refrega em que os corpos foram usados.
Estava convencido que não adiantava adiar
o envelhecimento. Não conseguiu conviver muito tempo com o propósito. Era um
corpo estranho invadindo-o por dentro. À primeira oportunidade, tirou as
medidas à noite e fez-se aos problemas. Acordou dorido, dois dentes partidos,
um hematoma visível na testa, talvez uma costela fraturada, tantas as dores por
ali. E sorriu. Com o sorriso ensandecido de quem se alimenta de sarilhos.
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