16.7.14

Morder no pescoço

Mão Morta, "Cão de Morte", in https://www.youtube.com/watch?v=Rm_qnHfeTsE
Mordem, as mães gatas, no pescoço das crias, para nelas pegarem. Mordem-se os amantes quando a luxúria está em ebulição. Mas mordem-se os que vêm com paninhos quentes, insidiosamente oferecendo prebendas para a alma, sem que o agraciado note que vai ser mordido no pescoço como o fazem os vampiros às suas vítimas. E mordem-se, ainda, as bestas que sobrevivem alimentando-se umas das outras.
Não será aleivosia fatal se a bissetriz for a real espessura do que existe: uma selva de betão com os predicados das almas a condizer, empedernidos. Às tantas, parece que anda meio mundo a tentar encavalitar-se na outra metade, nem que para tal seja preciso afiar os punhais e espetá-los bem fundo, sangrando até à morte quem aparecer pela frente e se fizer estorvo. Se o oponente for um desconhecido, a frieza com que a empreitada acontece é sugestiva do selvático estado da coisa; em sendo um conhecido que é preciso sacrificar no altar da ignomínia pessoal, arranja-se à mesma mordê-lo no pescoço, deixando-o lívido e apartado da contenda.
Morde-se no pescoço por boas e más razões. Ambivalência que é selo da modernidade. O mesmo gesto pode ter boas intenções ou ser um denso novelo que esconde malévolas finalidades. As pessoas que se mordem quando os sentidos se embebem de lascívia, ou as (talvez) mesmas pessoas que se mordem mercê da liquidação do outro. Podemos ser, de um instante para o outro, admiráveis e bestas. A arma de arremesso é silenciosa, parece não causar dor. Depois de mordido o pescoço por inestimáveis amigos fantasmas, a cicatriz grita bem alto o mal infligido. Podemos acautelar que nos mordam no pescoço? É um jogo aleatório. Pode ser reconfortante, pode ser agressão. Quando o sabemos? Na dúvida – mandam os preceitos dos cautelosos – evitemos que nos mordam no pescoço. E se aparecer uma figura melíflua que esconde a sua terrífica feição detrás de uma virgínea aparência, quem a pode tomar por personagem vampírica?
Sejam entronizados os preceitos que nos mandam precatar e vamos a caminho da insípida forma de ser. Não é melhor diagnóstico.

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