Mão Morta, "Cão de Morte", in https://www.youtube.com/watch?v=Rm_qnHfeTsE
Mordem, as mães gatas, no pescoço das
crias, para nelas pegarem. Mordem-se os amantes quando a luxúria está em
ebulição. Mas mordem-se os que vêm com paninhos quentes, insidiosamente
oferecendo prebendas para a alma, sem que o agraciado note que vai ser mordido
no pescoço como o fazem os vampiros às suas vítimas. E mordem-se, ainda, as
bestas que sobrevivem alimentando-se umas das outras.
Não será aleivosia fatal se a bissetriz for
a real espessura do que existe: uma selva de betão com os predicados das almas
a condizer, empedernidos. Às tantas, parece que anda meio mundo a tentar
encavalitar-se na outra metade, nem que para tal seja preciso afiar os punhais
e espetá-los bem fundo, sangrando até à morte quem aparecer pela frente e se
fizer estorvo. Se o oponente for um desconhecido, a frieza com que a empreitada
acontece é sugestiva do selvático estado da coisa; em sendo um conhecido que é
preciso sacrificar no altar da ignomínia pessoal, arranja-se à mesma mordê-lo
no pescoço, deixando-o lívido e apartado da contenda.
Morde-se no pescoço por boas e más
razões. Ambivalência que é selo da modernidade. O mesmo gesto pode ter boas
intenções ou ser um denso novelo que esconde malévolas finalidades. As pessoas
que se mordem quando os sentidos se embebem de lascívia, ou as (talvez) mesmas pessoas
que se mordem mercê da liquidação do outro. Podemos ser, de um instante para o
outro, admiráveis e bestas. A arma de arremesso é silenciosa, parece não causar
dor. Depois de mordido o pescoço por inestimáveis amigos fantasmas, a cicatriz
grita bem alto o mal infligido. Podemos acautelar que nos mordam no pescoço? É
um jogo aleatório. Pode ser reconfortante, pode ser agressão. Quando o sabemos?
Na dúvida – mandam os preceitos dos cautelosos – evitemos que nos mordam no
pescoço. E se aparecer uma figura melíflua que esconde a sua terrífica feição
detrás de uma virgínea aparência, quem a pode tomar por personagem vampírica?
Sejam entronizados os preceitos que nos
mandam precatar e vamos a caminho da insípida forma de ser. Não é melhor
diagnóstico.
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