4.2.15

As meninas más vão para o inferno, as outras vão para todo o lado

Viet Cong, “Continental Shelf”, in  https://www.youtube.com/watch?v=hdMz7BUtOvk    
D. cresceu num ambiente com forte presença masculina. Marialva, até. Passou pelo tempo a ver o pai a tratar a mãe com desprezo. Era como se fosse sua servente. Às vezes, foi testemunha de violência sem que a mãe esboçasse reação. E que ninguém dissesse à mãe para lavrar queixa na polícia, que parecia que lhe acenavam o demónio.
D. foi formando a personalidade num jogo de contrastes. O que fora presença regular na infância e na adolescência seria antítese no comportamento doravante. Aos homens passou a dedicar o mesmo desprezo que o pai entregava à mãe. Usou algumas armas do pai: o cinismo, a frieza maquinal, a crueldade de espírito, a ausência de compaixão, o oportunismo. Haveria de se servir dos homens e pisotear as mulheres que fossem embaraços no seu caminho. Seria uma histriónica vingança do ser que mais odiava, quem lhe dera, juntamente com a mãe, existência.
Os namorados nunca eram. Não havia laços. Tirava partido do que tinham para lhe dar, apenas – o prazer carnal, uma companhia para ir de férias, ou ao cinema, ou a um festival de música. Era ríspida. Incapaz de mostrar um afeto. Ninguém lhe conhecera um ato de carinho, apenas o pragmatismo de se servir de alguém para saciar prazeres e colecionar desideratos. Algumas vezes foi preciso usar da força física e nunca hesitou. À cautela, dotou o corpanzil com umas lições de autodefesa (jurou que jamais seria passiva como a mãe). Algumas amigas atravessaram-se no caminho. Escolheram lugares opostos ao dela. Do enfrentamento não retiraram grande préstimo. Umas humilhações ali, uns olhos negros aqui – e D., que foi carregando o pesado fardo de ser intratável aos olhos dos outros, comprazia-se com o diagnóstico alheio.
Não quis deixar descendência: não tinha paciência para o processo maternal, deplorava as embevecidas narrações de outras mulheres que se haviam feito mães e (acima de tudo) achava injusto trazer alguém a este mundo sórdido. Não temia a solidão. Nunca deixou de fazer o que lhe apetecia. Sabia que não adiantava pôr freios na rebeldia. Quando o tentou, era ela que se voltava contra si mesma. A natureza não se combate. Mesmo que arregimente o inferno depois da partida.

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