Viet
Cong, “Continental Shelf”, in https://www.youtube.com/watch?v=hdMz7BUtOvk
D. cresceu num ambiente
com forte presença masculina. Marialva, até. Passou pelo tempo a ver o pai a tratar
a mãe com desprezo. Era como se fosse sua servente. Às vezes, foi testemunha de
violência sem que a mãe esboçasse reação. E que ninguém dissesse à mãe para lavrar
queixa na polícia, que parecia que lhe acenavam o demónio.
D. foi formando a
personalidade num jogo de contrastes. O que fora presença regular na infância e
na adolescência seria antítese no comportamento doravante. Aos homens passou a
dedicar o mesmo desprezo que o pai entregava à mãe. Usou algumas armas do pai:
o cinismo, a frieza maquinal, a crueldade de espírito, a ausência de compaixão,
o oportunismo. Haveria de se servir dos homens e pisotear as mulheres que
fossem embaraços no seu caminho. Seria uma histriónica vingança do ser que mais
odiava, quem lhe dera, juntamente com a mãe, existência.
Os namorados nunca eram.
Não havia laços. Tirava partido do que tinham para lhe dar, apenas – o prazer
carnal, uma companhia para ir de férias, ou ao cinema, ou a um festival de
música. Era ríspida. Incapaz de mostrar um afeto. Ninguém lhe conhecera um ato
de carinho, apenas o pragmatismo de se servir de alguém para saciar prazeres e
colecionar desideratos. Algumas vezes foi preciso usar da força física e nunca
hesitou. À cautela, dotou o corpanzil com umas lições de autodefesa (jurou que
jamais seria passiva como a mãe). Algumas amigas atravessaram-se no caminho. Escolheram
lugares opostos ao dela. Do enfrentamento não retiraram grande préstimo. Umas
humilhações ali, uns olhos negros aqui – e D., que foi carregando o pesado
fardo de ser intratável aos olhos dos outros, comprazia-se com o diagnóstico
alheio.
Não quis deixar
descendência: não tinha paciência para o processo maternal, deplorava as embevecidas
narrações de outras mulheres que se haviam feito mães e (acima de tudo) achava
injusto trazer alguém a este mundo sórdido. Não temia a solidão. Nunca deixou
de fazer o que lhe apetecia. Sabia que não adiantava pôr freios na rebeldia.
Quando o tentou, era ela que se voltava contra si mesma. A natureza não se
combate. Mesmo que arregimente o inferno depois da partida.
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