Pop
Dell’Arte, “Querelle”, in https://www.youtube.com/watch?v=mNlHhwL8tMA
Gente predestinada. Salvadores
da restante gente que medra numa perdição qualquer. Elevam-se a um estatuto de
reserva moral, só à espera que a desgraça atinja tamanhos foros que uma maré
inteira de gente os venha reivindicar num necessário momento salvífico. Ficam
numa posição que adeja sobre a dos outros, como os banheiros quando vigiam a
praia movimentada.
Suponho que não se deitam
sem antes se admirarem demoradamente ao espelho. Interrogando-se, vezes sem
conta, num ritual diário, quem, além das suas prescientes personalidades, tem
capacidade para dobrar o tormentoso cabo que se avizinha. Ao acordar, a
primeira tarefa é repetir o ritual do deitar. As pontas dos dias têm de ser
atadas por um culto da personalidade (a si mesmos). Se não forem eles a tanto
acreditarem que são messiânicas personagens, quem há de crer?
É uma tarefa ingrata.
Imersos num remoinho narcisista, não podem ser ostensivos na exteriorização das
imensas capacidades. O povo não costuma gostar da gabarolas, mesmo se atrás de
si vierem pergaminhos que esbracejam a seu favor. Devem moderar o narciso que habita
deles. Devem ser modestos nas proclamações quando aparecem em público. Sabem,
em compensação, que os jornais e as televisões, esse mercado que fabrica
personagens e as entrega ao escrutínio do povo, tratam de os acarinhar no
regaço. Fazem todo o serviço: a preparação de um novo messias, a gestão
meticulosa das aparições em público, as palavras sempre medidas ao milímetro,
até que, quando algo desaba e o povo fica desorientado, um deles surge do
firmamento, abraçado a vitualhas redentoras, e afasta com as poderosas mãos o
cerrado nevoeiro que não deixava o povo ter um módico de perspicuidade.
Não podem transigir da
paciência para não estragarem a obra de arte que é serem messias esperados pelo
povo que se engasgou num desespero. E nós, mortais comuns, gente sem predicados
para sequer sonharmos com um manto salvífico a cobrir-nos a aura, inclinamo-nos
perante os messias que aí vêm.
É pena aprendermos pouco
com a história (por uma vez que seja). Os messias são arranjos de (uma) história
mal contada. Os heróis, invenções dos filmes.
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