6.2.15

Os messias

Pop Dell’Arte, “Querelle”, in https://www.youtube.com/watch?v=mNlHhwL8tMA
Gente predestinada. Salvadores da restante gente que medra numa perdição qualquer. Elevam-se a um estatuto de reserva moral, só à espera que a desgraça atinja tamanhos foros que uma maré inteira de gente os venha reivindicar num necessário momento salvífico. Ficam numa posição que adeja sobre a dos outros, como os banheiros quando vigiam a praia movimentada.
Suponho que não se deitam sem antes se admirarem demoradamente ao espelho. Interrogando-se, vezes sem conta, num ritual diário, quem, além das suas prescientes personalidades, tem capacidade para dobrar o tormentoso cabo que se avizinha. Ao acordar, a primeira tarefa é repetir o ritual do deitar. As pontas dos dias têm de ser atadas por um culto da personalidade (a si mesmos). Se não forem eles a tanto acreditarem que são messiânicas personagens, quem há de crer?
É uma tarefa ingrata. Imersos num remoinho narcisista, não podem ser ostensivos na exteriorização das imensas capacidades. O povo não costuma gostar da gabarolas, mesmo se atrás de si vierem pergaminhos que esbracejam a seu favor. Devem moderar o narciso que habita deles. Devem ser modestos nas proclamações quando aparecem em público. Sabem, em compensação, que os jornais e as televisões, esse mercado que fabrica personagens e as entrega ao escrutínio do povo, tratam de os acarinhar no regaço. Fazem todo o serviço: a preparação de um novo messias, a gestão meticulosa das aparições em público, as palavras sempre medidas ao milímetro, até que, quando algo desaba e o povo fica desorientado, um deles surge do firmamento, abraçado a vitualhas redentoras, e afasta com as poderosas mãos o cerrado nevoeiro que não deixava o povo ter um módico de perspicuidade.
Não podem transigir da paciência para não estragarem a obra de arte que é serem messias esperados pelo povo que se engasgou num desespero. E nós, mortais comuns, gente sem predicados para sequer sonharmos com um manto salvífico a cobrir-nos a aura, inclinamo-nos perante os messias que aí vêm.
É pena aprendermos pouco com a história (por uma vez que seja). Os messias são arranjos de (uma) história mal contada. Os heróis, invenções dos filmes.

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