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Ora, a decência pode
impedir as palavras fortes. Aquelas que ferem. Podem transgredir a
sensibilidade de quem a elas se destinam. Para não maçar a coragem, ou por
piedade mal disfarçada, pode-se mudar o método: tira-se partido do avantajado
conhecimento do vocabulário.
Mas como o vocabulário tende
para o infinito, há palavras novas por conhecer. É o encantamento da língua, da
língua encharcada em tanta riqueza. Descobre-se uma palavra nova, tão nova que
nunca houve notícia dela, e a coragem preguiçosa aplaude ao saber que pode assinar
intentos sem ofender ninguém. Tire-se a poeira ao bloco de notas: beócio
(agradeço ao Paulo Tunhas, na recente crónica publicada no Observador). Agora, a coragem preguiçosa sabe que pode empregar “beócio”,
de preferência em tom enternecedor para enganar melhor. Não é belicoso. Se dita
em tom simpático, com um sorriso à mistura, os destinatários hão de achar que
se lhes dirige ditirambo. Porventura, confundindo o sentido de “ditirambo”, que
a falta de modéstia embacia a contumaz agnosia.
O asno passa por
personalidade encantadora. Lisonjeado, nem repara no ultraje. É apropriado para
uma selva onde quase tudo se faz de conta. Mais a mais, com a preguiça
militante, o beócio nem terá o cuidado de procurar significado no dicionário. O
sorriso ardiloso que vem a par da palavra proferida dispensa a visita ao
dicionário. De hoje para amanhã, o beócio chamará beócio a outra gente que
admira. A indolência inata, a que dispensa a consulta do dicionário, tratará da
adulteração dos sinónimos. Um biltre que se preze não se importará que o
alcunhem de beócio. E beócios depressa todos seremos, pois também há gente que
merece encómios (nem que beócio não seja ditirambo algum).
Um dia, quando os asnos
todos se não importarem de se lhes pespegar o rotulo de beócio, pode ser que ao
vocábulo seja emprestado novo sentido. Não é de hoje: as convenções acabam por
adulterar o sentido das palavras. Nessa altura, a palavra que só andava na rua
com máscara perderá o disfarce. E com a máscara ida, desaparece a pilhéria de
cavar no fundo do dicionário as palavras furtivas que nem se julgava existir
para cumprimentar o próximo.
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