9.2.15

Mercavam-se afetos


Tricky, “Nothing Matters”, in https://www.youtube.com/watch?v=3FTm72Ux350    
Na praça das túlipas, mesmo ao lado do mercado das cruzes, começaram a surgir papeis afixados nas grades que separavam o jardim do exterior. Os homens do lixo foram os primeiros a dar conta (para além dos autores das apostilhas). Era o ponto de encontro dos afetos desavindos. Um mercado como deve ser. As câmaras que nos trazem sob vigilância constante deram solução ao que depressa deixou de ser um enigma: que acorria a afixar a procura e oferta de afetos? Havia gente carente. E gente pródiga, pronta para o magistério da generosidade.
Os primeiros: apoquentados pela solidão, incapazes de tratarem dos afetos próprios, destroçando-os à primeira incontinência sinalizada em forma de altercação. Mendigos, necessariamente sós. Gente bem posta, executivos garbosos a deixarem nótula de desespero. Raparigas novas que não sabiam ser sedutoras, à conta da insegurança pós-adolescente. Velhos curvados nas bengalas, em decadência depois da consorte ter partido. Jornalistas e escritores e pintores, mais ou menos conhecidos do público, assim se percebendo alguma prosa sentida que vertem nas notícias que demandam o drama, na prosa apoplética dos romances, nos quadros que são um desarranjo mental.
A gente pródiga em afetos distinguia-se pela pose. Não chegavam cabisbaixos, não tinham vergonha nem hesitavam em deixar o pedaço de papel. Mas também eram de heterogénea condição. Havia alguns sem-abrigo que, ainda assim, superavam a indigência e tinham afetos para legar. Estudantes que transigiam as tarefas que os esperavam, uma válvula de escape. Poetas positivos, cineastas lúgubres, bailarinas com corpos de cristal, polícias que procuravam um horizonte despejado das misérias diárias, cegos e homens estropiados em cadeiras de roda que sabiam transfigurar as fragilidades em artes fortes.
Naquele mercado, como espontâneos são os mercados, as necessidades encontravam-se. Uns, desesperados por quererem um ombro onde repousar uma palavra expediente, o desabafo das suas dores interiores, gente que já nem se lembrava de haver quem os tratasse com decência. Os outros, que transbordavam afetos e sabiam que havia quem deles estivesse à míngua. E mesmo alguns que, em não se tratando de transbordarem afetos, sabiam que ao darem o que não tinham podiam obter para finalmente o terem.

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