Julia Holter, “Words I Heard”, in https://www.youtube.com/watch?v=vIk2CGUTPr0
Não entendo a necessidade de fazer “balanços” do ano que está senescente, nem em tirar poeira a um oráculo à procura das adivinhas que serão as linhas por onde se irá compor o ano vindouro. Tirando a fantasia das celebrações, não vejo diferença em arrancar a folha do calendário do trigésimo primeiro dia de dezembro ou a folha do calendário do décimo sexto dia de julho. É um dia que cede o passo ao outro. No primeiro caso, com a genuflexão imperativa ao canónico, ao ano que passa a existir em deposição do ano que se sepulta. Desconheço os meandros interiores de quem se ofereça a resoluções radicais apenas porque a próxima página do calendário é a primeira do mês de janeiro. Assim como não entendo as convicções firmes de que um ano neófito será: i) uma página dedilhada no sentido da esperança, com as pessoas ávidas de pessoas que se untem na bondade, com um interminável cortejo de imperfeições finalmente corrigidas porque chegou a hora de decretar um salto antropológico, necessariamente em frente e consequente de um progresso; ou ii) uma página que afunda a espécie na sua crise imorredoira, com mais nuvens plúmbeas acasteladas no céu de chumbo, o olhar paradoxalmente melancólico (e paradoxalmente porque nunca terá conhecido outro mundo se não o mundo deplorável que dizem seus tutores ser o nosso teto). Ora, como não sei fazer previsões, e desconheço as conjugações astrais que põem os acontecimentos em certas casas da carta astral (momento de cinismo), não tenho nada a acrescentar no que ao ano de dois mil e dezanove diz respeito. Não irei catalogar juras à cadência das passas ingeridas à bruta. Não ascenderei a um púlpito, apenas porque me considero titular de tal posição, para lamentar os contornos do pessimismo antropológico dominante e propor (em jeito meio catedrático, meio consultor de almas extraviadas) os milagres de que precisamos para sermos todos melhores. Não vou incomodar um grama da atenção ao sobressalto causado pela sensação de rebanho tresmalhado que soa a humanidade. E não irei tecer loas ao que quer que seja, porque não sei fazer previsões e desconfio que as pessoas se extenuam das coisas boas que têm em seu regaço, destroçando-as à primeira oportunidade. (E talvez este seja um modesto subsídio para a teoria da crise contínua.)