30.11.18

Bacalhau há Braz


The Art of Noise, “Paranoimia”, in https://www.youtube.com/watch?v=6epzmRZk6UU
          Chegou à porta do infantário com a filha, como acontecia todas as manhãs. Ao tocar à campainha, os olhos esbarraram na ementa (não por acaso afixada ao lado do intercomunicador). Naquele dia, as crianças iam comer “bacalhau há Braz”. Pensou: não é mau manuseio do idioma, não senhor, para um estabelecimento de ensino. Uma vez dentro do infantário, chamou a responsável (que coincidia com a proprietária). Perguntou, com um propositado ar de desdém, se ao mesmo tempo que as crianças iam ter bacalhau como repasto o almoço seria acompanhado por um palhaço de nome Braz. A senhora fez um esgar de surpresa e disparou: 
- Não entendo. O que quer dizer?
- Quero dizer que a senhora se esqueceu de interceder por uma vírgula entre a palavra “bacalhau” e o verbo “haver” que precede o nome do – julgo eu – palhaço chamado Braz.
- Continuo a não perceber. Onde quer chegar?
- Depois de deixar a minha filha e abandonar o seu estabelecimento, quero chegar à primeira papelaria para comprar um corretor líquido e uma esferográfica preta.
-  Por favor, clarifique essa linguagem cifrada.
- Deve ser da mesma ordem de grandeza da destreza de quem escreve as ementas afixadas à entrada.
A senhora começou a perder a paciência. E nem os pergaminhos de aspirante a personagem bem cotada na “sociedade” conseguiram domar alguma mostarda que, notava-se, começou a subir ao nariz.
- Se está a gozar comigo, escolheu o dia errado.
- Está mal disposta? (perguntou, sem conseguir reprimir um tom levemente irónico, que não passou despercebido e detonou a ira mal contida na responsável do infantário).
- Fiquei agora.
- Não me diga que foi esse acesso de má disposição provocado pela minha interpelação...
- O que acha?
- Que o palhaço Braz deve ser tão famoso que até o chamam para acompanhar o bacalhau servido ao almoço. Isso é para convencer as crianças a comerem bacalhau?
- De uma vez por todas, explique-me o que se passa com o bacalhau e o palhaço Braz.
- A senhora vistoriou a ementa afixada à entrada?
- Não precisei. Eu é que a escrevo.
- Ah! Está tudo explicado. Deixe-me dizer que ao olhar para a ementa afixada à entrada fiquei com a ideia que o bacalhau convocou o Braz para a refeição.
- ...(com ar atónito e afogueado, sentindo que estava a ser escarnecida.)
-  É o que depreendo. Pois se o verbo haver (há, com “h” é do verbo haver, não é?) vem a seguir ao bacalhau, é porque o bacalhau está a anunciar que há um Braz a acompanhá-lo. Parto do pressuposto que não mataram nenhum Braz para povoar o bacalhau como acompanhamento – nem admitia a possibilidade de os educandos serem introduzidos à antropofagia...Se me permite o conselho gramatical: se é este o caso (a visita do Braz à hora do almoço), coloque uma vírgula à frente do “bacalhau”.
- Estou cada vez menos a perceber o que me está a dizer. Até parece que está a falar estrangeiro.
- Imagino que sim, que este idioma, e esta gramática que é minha, sejam estrangeiros para a senhora.
- Lá está outra vez a abusar no cinismo. É incorrigível!
- De todo, minha senhora, de todo. Peço desculpa se a abespinhei. Permita-me só um pedido: ao menos que valha a pena, a presença do palhaço Braz a acompanhar a refeição. Se tiver conseguido convencer a minha filha a gostar de bacalhau, perdoo-lhe o resto.
- Perdoa-me o quê?
- Vá ler a ementa com olhos de ver e amanhã voltamos a conversar. Da parte que me toca, perguntarei à minha filha se o Braz palhaço tornou comestível o bacalhau de que ela não gosta. E depois, talvez tenha umas vírgulas para trocar em abono de um desconto na propina – ou uma sugestão para não confundir o verbo “há” com a contração da proposição “a” com o artigo definido feminino singular “a”, que resulta em “à”...

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