Dick Stusso, “Modern Music”,
in https://www.youtube.com/watch?v=tJBqGe88-9A
Já era quase hora de o sol se
levantar. O tatuador não estava na cama há muito tempo. Os hábitos noctívagos
pesavam na rotina do sono. Desta vez, ao contrário do habitual, estava às
voltas com uma insónia. Mexia-se na cama, tentava isolar o pensamento num
vazio, e o sono continuava contumaz. Por mais que ensaiasse o ardil do
pensamento no vácuo – é o que acontece quando os olhos se fecham e mentalmente
se domina o pensamento de modo a não pensar em nada. Mas os sentidos estavam de
atalaia. Ainda se levantou e bebeu um copo de água – dizem que afugenta a insónia.
Para nada. Depois foi à janela e começou a entrever no fio do horizonte a
primeira claridade que rompia com a noite.
Não queria admitir, mas um
pensamento sobrepunha-se ao resto, até ao exercício do metódico pensamento esvaziado
de pensamento: nos últimos tempos, foram vezes de mais que se pôs no papel de
guru dos outros, de “voz da consciência” para inaugurar as interrogações que os
outros deviam colocar a si mesmos. Parecia um paradigma de qualquer coisa. Não era.
Todos os conselhos que prestara, todas as provocações que enfureceram os interlocutores,
todas as lições que esboçara no seu elevado estirador ético – tudo se resumia a
um imenso nada, um embuste. Se havia papel que podia reclamar, era o de antítese
de paradigma. Eram os frios lençóis da cama, os frios lençóis que convocavam o corpo
cansado, que davam o aval a esta dolorosa leitura.
E, todavia, quando vinham à
lembrança memórias recentes, os episódios em que se emproara ao lugar de
aconselhador dos outros, descaía no mesmo: revolvia-se em perguntas atrás de
perguntas, elucubrava cenários, fazia e desfazia telas imaginárias com explicações
que se atropelavam em explicações sobre os comportamentos dos outros, sobre o
porquê de eles não serem aquilo que ele aconselhava ser, mesmo que no silêncio
sepulcral do seu íntimo soubesse que nunca soubera ser o recomendado. Talvez
este método fosse um lamento pessoal. A admissão da sua imensa falibilidade. Projetava
nos outros aquilo que ele sabia não ser, que não conseguir ser. Os outros por
ele aconselhados eram a válvula de escape, o oportunismo para tentar ser diferente.
Acabava sobressaltado por uma angústia
excruciante. Os outros questionavam-no (quantas vezes ouvira, nos últimos tempos,
uma interpelação indignada dos outros, a ele dirigida: “eu pedi-te para dares opiniões sobre a minha vida?”) e não seguiam
os seus muito sábios conselhos, nem se reviam na sua hermenêutica dos outros. Era
quando se sentia terrivelmente sozinho. Se os outros recusavam os seus préstimos,
ele não tinha como se ajudar por intermédio da ajuda que prestava aos outros. Era
um ciclo vicioso, sem saída, o pior dos labirintos.
Incomodava-o outro paradoxo sem
explicação convincente: quando olhava em retrospetiva para a vida, não tinha
arrependimentos que o consumissem, não encontrava passagens que envergonhassem,
não se podia dizer que ele era uma pessoa não recomendável; de igual modo, não
se lembrava de proezas que constituíssem motivo de orgulho. Era, a vida dele,
uma vida como a de tanta outra gente. Se alguém perguntasse como desenharia a
diferença, não tinha resposta. Estava contente com a vida que levava. Contudo,
este afã de ajudar os outros, reconhecendo que através dessa ajuda estava a
estender a mão a si mesmo, não quadrava com o anterior. Se não queria mudar
nada na vida, como explicava a urgência de ser guru dos outros e, desse modo, recolher
frutos que fossem em seu proveito?