The Sugarcubes, “Hit”, in https://www.youtube.com/watch?v=Z5fAWpv_axs
A devastação consome a serenidade. Abatem-se sombras, malignas. Um odor pestilento atravessa as veias, a sórdida contaminação que desabastece o mundo de claridade. Os muros voltam a ser património, envergonhando os semelhantes que são reeducados como se apenas fossem diferenças. As manhãs crescem como se já fossem o anúncio da noite – e a noite transfigurou-se num palco que hospeda pesadelos, medonhos.
O mundo não se recomenda. Está entulhado por ideias que prescreveram e, todavia, entram pela porta dos fundos, reabilitadas, até se estabelecerem. As palavras são adulteradas para traduzirem hostilidade, agravo, falsificação, desconfiança, represália, desverdade. O sangue ferve e, ao mesmo tempo, parece hibernar. Diante deste espetáculo atroz somos presas fáceis se o silêncio for o mote. Sendo cúmplices pela apatia, deixando sem resposta as injúrias que estilhaçam um código de valores, uma pertença civilizacional tomada de assalto pelo medo que temos do medo infundido pelos mastins arregimentados. A falta de memória histórica é aterradora. O défice de interesse ajuda a branquear a falta de memória histórica.
A capitulação não pode ser a palavra de ordem. Nem a confortável posição em que ficamos quando endossamos a responsabilidade aos outros, à medida que os outros a vão endossando sempre para o vizinho do lado, e assim sucessivamente. O mundo está a precisar de heróis – de heróis modernos, que usem a palavra para demolir a agressividade que derrama sobre nós o abismo da hostilidade, numa beligerância geral que ameaça tomar conta do tempo. De heróis que não sejam feitos de bravura destemida e de demenciais atos de desprendimento do eu. Os heróis que são precisos querem-se vivos. Pois são os vivos que conseguem recolher os estilhaços e transformá-los numa cidade remoçada.
Esta é a epopeia que prometemos. Contra os filisteus que só se mantêm enquanto o mundo estiver do avesso, contra a desconfiança ilegítima que perfura a pleura da humanidade, contra os despojos intencionalmente vertidos sobre os nossos olhares entretanto desatentos, uma epopeia. Para não sermos cúmplices do avançado estado de decomposição dos códigos de conduta prescrito por aqueles que a História sentenciou.
Ainda vamos a tempo dessa epopeia.
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