3.3.25

Cavalo sem freio

Paul Weller, “I Woke Up”, in https://www.youtube.com/watch?v=yvKjGf5g9Z8

Nem a noite aquietava o sangue ebuliente. Esperneava entre as veredas que abria com o focinho, como se fugisse de tudo, sem medo dos arbustos altos que cobriam o caminho. Perdera conta dos montes subidos e depois descidos, dos riachos atravessados, dos lugares por que passou sempre a evitar povoados humanos. Sentia o cansaço nas patas mas não podia parar. Às vezes abrandava, o corpo mandava respirar mais devagar, era a pausa necessária para carregar forças. 

Os cursos de água que apareciam pelo caminho vinham a calhar. Dessedentava-se. Sentia a água que descia pela garganta como o alívio da febre interior que o levou à fuga. A água fresca acalmava o coração. Ao chover, lembrava-se porque fugiu. As gotas da chuva que se recolhiam no dorso avivavam as feridas ainda abertas, os lanhos perpendiculares atravessavam as costas de um lado ao outro. Fugira há dois dias mas já tinha como distante a memória daquele circo onde era maltratado. Tão cedo não queria ver rostos humanos. Ganhou uma desconfiança metódica das pessoas. Mesmo daquela gente sem relação com o circo, cúmplices por omissão por continuarem a frequentar o circo.

Não sabia nada de geografia, nem sabia para onde ia. Continuava a trotear sem destino, errando no avesso da memória. Ainda se lembrava do chicote em riste quando o tratador o queria domar. Nunca percebeu a maldade: sempre foi dócil, nunca se insurrecionou contra as pessoas do circo. A violência do tratador tornou-se insuportável, insultuosa. Como se podia dizer que aquele homem era o seu tratador se o que ele fazia era destratá-lo?

Só não se queixava da comida: havia ordens no circo para os animais serem bem alimentados, não queriam que o circo passasse vergonha à custa de animais macilentos e adoentados. As pessoas estão cada vez mais atentas aos maus-tratos a animais, até há leis que castigam aqueles que castigam os animais. Tirando a alimentação (e o cuidado com o pelo, porque tinha de aparecer em público com o pelo sedoso), o resto eram maus-tratos. Dormia sob a égide das tempestades porque os trabalhadores do circo não queriam acordar a meio da noite para recolher as bestas. Os deveres periódicos de consulta com um veterinário eram esquecidos, as contas do circo estavam apertadas e a ameaça de falência pairava.

Quando teve oportunidade rasgou o arreio que o prendia a uma árvore com toda a força dos dentes. Não olhou para trás e correu com toda a força que as pernas tinham. Podia não saber de geografia, mas sentia que uma bússola interior o levava para os antípodas do lugar onde estava estacionado o circo. Não sabia o que seriam os amanhãs consecutivos. Mas não se importava com isso.

Agora, era um cavalo selvagem. Furtivo, mas livre. Longe de humanos, que o trauma dos humanos era uma ferida aberta enquanto a memória não se esvaísse. As montanhas em redor não tinham povoados por perto. Era capaz de encontrar refúgio para dormir e o lugar era pródigo em bagas, frutos silvestres e feno espontâneo. Não sabia quando ia morrer. Mas sabia que podia morrer sem sentir o sobressalto contínuo de uma mão a agredi-lo.

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