14.3.25

Reembolso

Ólafur Arnalds & Loreen, “SAGES”, in https://www.youtube.com/watch?v=4OTd2qBH6jQ

O livreiro já não tinha espaço para passar nos corredores onde se amontoavam os livros. Comprava-os compulsivamente, mesmo sabendo que nem a hipótese de longevidade o salvava de não conseguir ler todos os livros. Dizem que há uma doença para esta compulsão, uma palavra japonesa. Não queria saber: se fosse o caso, autodeclarava-se doente um primeiro grau, viciado em livros, incorrigivelmente. Mesmo que soubesse que não conseguiria ler todos os livros anarquicamente espalhados pelas estantes, pela sala, pelos corredores, pelos quartos – até na cozinha havia livros.

Não fosse ele livreiro. Amador, mas livreiro. Não era alfarrabista, porque não estava no negócio e se algum houvesse, o dele era unilateral: dedicara-se a comprar livros, de todos os feitios e géneros, no idioma nacional e noutros idiomas, até os que eram ininteligíveis, antigos e atuais, técnicos e de literatura, poesia ou prosa, muitos. Não podia estar no negócio porque se sentiria estropiado se vendesse exemplares da sua coleção. Ainda pensou afixar um letreiro à porta de casa com o dizer “biblioteca”, mas ainda se importa com o que os outros dizem e os outros são vizinhos a que não é indiferente. 

Todos os dias lê pelo menos cento e cinquenta páginas. Pode ser do mesmo livro ou ser um caminheiro, livro para cá, livro para lá. Lê a qualquer hora do dia, em qualquer lugar. A mochila é sempre o logradouro temporário que recebe livros que escolheu para acompanhar o dia. Tanto gosta de ler um livro quase sem respirar, da primeira à última página, como trazer um punhado de livros por companhia durante uns dias, arrastando a leitura pelos dias fora. As mesinhas de cabeceira foram colonizadas por livros. Eles são o seu ansiolítico. Quando acorda, não se levanta sem ler um poema de um livro criteriosamente selecionado de véspera.

Um amigo assustou-se com a desarrumação da casa. Protestou contra o caos (“isto faz-te mal, há sítios da casa em que mal se consegue passar”). Advertiu-o da compulsão. Com algum desdém à mistura, disparou: “ainda por cima, não tens tempo de vida para ler tudo o que ainda não leste”. 

Ficou indiferente a tantos reparos. Sabia do seu amor aos livros, que crescera na medida diametralmente oposta do desamor às pessoas. Ou melhor: os livros ainda eram o último reduto onde conseguia encontrar pessoas recomendáveis. Mesmo que, no auge de um dilema moral, esbarrasse em pessoas execráveis e repletas de maldade: é com essas que aprendemos a não ser como elas. 

Sentia que a cada página ultrapassada a sua vida era reembolsada. Não havia melhor recompensa da e para a vida.

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