20.3.25

Se proibirem o pão duro, como fazemos açorda? (short stories #484)

Sugarcubes, “Regina”, in https://www.youtube.com/watch?v=Qfd5srbPUlo

           Cuidado com os bolores. Não são da estirpe de que é feita a penicilina. Os modernos déspotas, que só não se chamam déspotas porque vivem sob a tutela da democracia, estão de atalaia. Cuidam da nossa saúde. Proíbem a eito e regulamentam de outro modo, quanto proibir sai do raio de ação. Só vem para as bancas dos mercados o que passar no exigente crivo das credenciais devidas pelos cuidadores da saúde pública. Os fungos descontrolados podem ser perigosos para a saúde: ele há cogumelos mortalmente venenosos, queijos perigosamente apetitosos mas feitos de podridão, vinhos que adocicam à mercê de umas uvas quase podres e com bolores. E há o pão duro, que depressa ganha bolor. Proíba-se o pão duro para se pouparem idas desnecessárias às urgências dos hospitais de pessoas emaciadas e com desarranjos interiores. O pão duro passou o prazo de validade. Enrijeceu e pode ser danoso para a dentição dos loucos que se agarrarem a uma côdea de pau endurecido. Banir o pão duro e fora de prazo é, todavia, um golpe baixo contra a gastronomia tradicional: os melhores manuais gastronómicos recomendam o uso de pão muito seco para confecionar açordas. Os cuidadores da saúde pública andam distraídos. Deviam ter estendido a proibição às açordas. Porque uma açorda com pão fresco é um duplo desperdício: do fresco pão, que tem serventia melhor; e uma açorda à base de pão acabado de sair da padaria não cumpre os preceitos do preparado e perde qualidade. Ou então, as açordas são uma idiossincrasia e os habilitados tutores da nossa saúde desconhecem-nas. Temos direito a uma exceção. O pão duro está proibido pelos higienistas radicais. Mas podemos continuar a fazer açordas. Supõe-se, com o mesmo pão duro que foi declarado proibido. 

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