30.4.14

Quando as baias prendem o olhar

Cocteau Twins, "Those Eyes, That Mounth", in https://www.youtube.com/watch?v=iD0STDHNM8A
- Para que serve o olhar?
- Assim dito – como dizer? – estou sem resposta.
- Insisto: diz-me para que serve um olhar?
- Mas queres que responda sobre o meu olhar, ou sobre o olhar que assiste a qualquer um?
- O que quiseres.
- O olhar: esquadrinha, analisa, mede temperaturas, fareja os odores, decanta os pulsares que interessam, recusa o inestético, caso a estética tenha serventia. É bastante, a resposta?
- Talvez. Não te incomoda que haja olhares embaciados? E que esse embaciamento seja uma acomodação de quem adestra os olhares às suas baias redutoras?
- Não devemos julgar os olhares dos outros. Se há quem queira confinar-se à estreiteza do olhar, quem somos nós para menosprezar o arbítrio de quem a toma?
- Capitulas tão depressa? Não temos um dever de denunciar as camisas-de-forças que amputam olhares?
- Mesmo quando essas baias são voluntárias?
- Isso não pode acontecer. O livre arbítrio não quadra com as baias volitivas. Não há pessoa que consiga viver aprisionada num espartilho, mesmo que a ele se entregue no exercício da sua vontade.
- Podes julgar os outros com tanta certeza?
- Posso, se...
- ...não podes. É uma intrusão que não admitirias que ninguém viesse sobre ti cometer.
- Admitia: se conseguisse entender a vontade manietada e que do esconjurar da minha liberdade sobreviessem danos importantes.
- E terias lucidez para perceber que a vontade não está livremente sufragada? A alucinação toma conta da lucidez, não nos deixa ver, amputa o olhar. Não nos deixa ter um olhar se não restringido pelas baias de que não somos tutores.
- Afinal concordas comigo: o olhar deve ser descomprometido, sem restrições que aplaquem a lonjura que o olhar alcança.
- Se me pedires para responder ao que faço com o meu olhar, concordo. Não quero peias a obscurecer o espaço que medeia entre o horizonte e o meus olhos. Outro tanto não afirmo para o olhar dos outros.
- E não temes ser amordaçado por uma contradição insanável?
- Não. Repara: tu não podes impor aos outros a liberdade que ajuízas salutar para ti. Essa é uma liberdade condicional. Todavia, ao ser condicional deixa de ser liberdade. Tens de ensimesmar; fugir da tentação de aos outros impores o que para ti julgas curativo. Deixa cada olhar respirar pelos poros que o resguardam.

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