29.4.14

Baralho descarnado


Volstad, "É um jogo", in https://ragingplanet.bandcamp.com/track/volstad-um-jogo
Andava meio mundo em estouvada azáfama. Queriam amealhar muitas cartas, pois de entre elas trunfos haveriam de vir à superfície. E são os trunfos que têm valimento. Os trunfos que fazem a diferença. Destrunfada existência acomete-se de padecimentos plurais, descarnada perante as intempéries fortuitas. Valia tudo. Na demanda por trunfos, não havia regras nem códigos de conduta ou ética que tivessem sobrevivido. Dizia-se que só valia a lei da selva. E que na selva todos vão à vida por si, não contam com mais ninguém. Era um vê-que-te-avias, a desconfiança a gritar aos ouvidos de todos num complexo crescente, amplificando-se na ambivalência dos habitantes. As traições eram diárias. Havia quem só passasse o tempo a congeminar traições, nem percebendo que já eram vítimas de emboscadas enquanto os seus vendilhões passavam pelo mesmo mal.
Nada disso importava. A inteligência do mundo e a estética irrepreensível das coisas sensoriais ensinava a maior das lições. Açambarcar só para possuir mais do que os rivais, era estultícia. Um engodo em que acabavam, atraiçoados, os seus próprios fautores. Havia quem dispusesse abastados baralhos. Tamanha abundância apascentava férteis trunfos – acreditavam. Ah! Como se inebriavam os algozes de cada vez que encontravam um trunfo. Lambuzavam os dedos enquanto os olhos irradiavam um brilho judeu e esbofeteavam o trunfo em cima da mesa, preparados para recolher um troféu. O troféu era a dignidade de um adversário de ocasião, apanhado em contramão pela desdita do jogo.
Os famintos da abundância não contavam com a destreza dos poucos que não apostavam no jugo das quantidades. A estes, ocorria-lhes sussurrar entredentes – podia ser que os magnatas avarentos conseguissem ouvir: “quantidade não é qualidade. Quantidade não é qualidade. Quantidade não é qualidade.” Empenhados na ganância, exultavam quando um (julgavam) néscio era apanhado no jogo. Diziam com os seus botões: “são favas contadas.” Mais um cordeiro sacrificado na selva do jogo. Mais a mais, vinham a jogo descarnados, poucas cartas na mão e nenhuma na manga, que os braços vinham em sua nua forma por míngua de fazenda.
Repetidamente, os abastados perdiam o jogo. Tropeçavam na sua soberba. Só então percebiam o lembrete que ecoava, nas palavras ditas pelos outros, num recanto da memória: “quantidade não é qualidade.

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