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Pode acontecer: uma ira em combustão. A
raiva que incendeia as veias e sobressalta a respiração, que magoa. Pode haver
um rosário inteiro a fermentar essa ira. Descompõe-se o pensamento, fecha-se o
rosto, encavalita-se a impaciência, jogam-se palavras injustas contra quem não
tem culpa.
Mas essa ira não tem préstimo. Aplacá-la
é imperativo. Para refrear o coração alvoroçado, para domar os gestos iracundos
que fogem das pedras frias onde repousam os sedimentos da racionalidade. Ferver
em água fervente não é irremediável. Podemos ser as (nossas) pedras de gelo que
amputam a matéria fervente. É quando o olhar se dirige algures. Desde que
algures esteja nos antípodas da ebulição que nutre a ira. Fora dessa consumição
está o que importa.
O olhar mete âncora numa praia de maré baixa.
Demora-se na areia molhada de onde o mar foi enxuto. Demora-se mais longe,
detendo-se nas águas mansas que domesticam o sol que cresta. Buscam na areia
molhada os nutrientes da quietude. Uns búzios pequenos, uns seixos erodidos,
uma estrela do mar que espera pelo regresso da maré, um naco de madeira que
veio por um rio abaixo até se perder na imensidão do mar, as pegadas dos
albatrozes que dedilham o areal em busca de alimento. Os olhos cerram-se
enquanto a cabeça se ergue ao céu. O silêncio é entrecortado pela maresia. Pelo
sussurrar dos albatrozes que se refugiaram nas árvores por medo do sol que está
a doer. Os olhos reabrem-se e deparam com a mesma paisagem que, todavia, parece
outra diferente. As mãos estão molhadas. As calças também: a maré começou a
regressar e o êxtase não deixou tomar conta das águas que vieram beijar o corpo
sentado na areia.
Não importa. A maré deixou os sedimentos
da moderação. As mãos molhadas contaminaram-se, num salutar contágio, com os
sedimentos depositados pela maré que entretanto regressara. Tudo agora tem
folga. E tudo regressa aos azimutes que interessam. A página foi virada.
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