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Um pé alto contra o precipício. A coragem toda embainhada num golpe. A
duração do tempo não pode nada contra os esteios da fragilidade. Que se
fortalecem nas faldas da própria fragilidade. A qualquer momento, é como se o
chão pudesse sumir-se debaixo dos pés.
Esta angústia é insuportável. E, todavia, é esta insuportável angústia
que torna suportável a existência. Pois se vertigens não houvesse, e se os pés
se achassem numa hibernação sem fim, só tínhamos monotonia por todos os lados,
tudo igual e sem chama, como se todas as iguarias viessem embalsamadas por insípidos
cozinheiros. As vertigens são uma prova de vida. São elas que, ao mesmo tempo,
trazem o coração ao pé da boca e conferem o sal da existência. Há atalhos que
evitam os promontórios onde os pés se aventuram contra as algemas do tempo
envidraçado. Atalhos que previnem as vertigens que podem roubar o equilíbrio, o
corpo depois entregue ao vazio do precipício. Mas esse atalhos são a confissão
das facilidades. Um espírito exigente não empresta as chaves às facilidades.
Denuncia-as. Cristaliza-as num emparedado de onde não se possam soltar. Pois o
vício das vertigens é uma droga dura, irremediável, refrigerante.
Por isso é que os olhos não têm olhos senão para os alcantilados de
onde sopram os ventos tempestuosos, onde a chuva amacia o espírito, onde as
pedras pontiagudas adestram os pés até que, na fina embocadura da serrania, com
o precipício a bordejar as duas veredas, avancem destemidos e se embriaguem com
o ar fresco com que as divindades escondidas nas montanhas agraciam quem por lá
for à aventura. Até que o corpo seja mestre no equilíbrio precário e os
desfiladeiros não sejam paragens temidas. As vertigens não hão de deixar de ser
vertigens. Quando o corpo regressar às planícies, então imperador dos promontórios
recusados pelo comum dos mortais, já não se intimida com o bulício das grandes
cidades.
O tirocínio
teve seu espartilho no rarefeito ar das serranias. Onde os olhos, para afastar
os corvos negros que não paravam de adejar como cangalheiros da eterna desdita,
se debruçam, temerários, sobre os precipícios medonhos. Como arte do necessário
tirocínio para o que de mau houver de chegar.
1 comentário:
“Ora, onde mora o perigo
É lá que também cresce
O que salva”
[vertiginosamente frágil]
(Friedrich Hölderlin
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