7.10.14

Amor kamikaze

J. P. Simões, "Se por acaso", in https://www.youtube.com/results?search_query=jp+simoes+se+por+acaso
Existe o que é indisfarçável feixe de luz. Mas há feixes que não vão em harmonia. Acasos que tiveram um ocaso, deixaram cicatrizes para o tempo vindouro. Cicatrizes em desarmonia. Ele merda na ignorância do tempo vivido. Dobrou a página e fez-se ao futuro que vinha com outro brilho no olhar. Ela não se desapega do acaso. Recusa-se a aceitar que o ocaso empalideça as memórias. Mas dele não exige nada, nem que se lembre do que foi o acaso. O tonto amor por ele dele nada exige.
Em respeitando as memórias de antanho, delas alimenta os dias que correm na companhia do fruto que vivencia o passado que ela recusa a deixar em féretro. Deita-se com essas memórias, sonha com elas e acorda imersa no suor da solidão. Mas não é solidão na sua totalidade, que no quarto ao lado há um pequeno-almoço para servir, um fruto que é a negação do olvido do acaso que o acaso jogou ao ocaso. Ele não se lembra. Disfarça as memórias, diz para o dentro de si que o ocaso tratou de as deixar entregues numa sepultura qualquer. O tempo adelgaçou a desmemória. O egoísmo tratou do resto.
Mas ela entrega-se ao amor kamikaze. Não deixa o olvido tecer as teias na desonra do tempo. Não se quer despojar dos melhores dias que soube existirem. Fechou-se para o mundo, hibernou do tempo presente embebida nas recordações que traz à flor da pele. E assim foi adiando o tempo – o de hoje, sempre enfeitiçado pelo acaso de que não queria um ocaso; e sempre o de amanhã, um amanhã que nem sequer chegou a ser prometido. Todavia, não desiste. Nem que seja das memórias lânguidas que transporta enquanto fecha os olhos e recosta a cabeça no vidro embaciado do autocarro, a caminho da fábrica. O filho não sabe que tem um pai. Ela não quer. Não quer que um dia o filho renegue o pai que não o queira conhecer. E ela, desvairada na melancolia que a atira para uma cornucópia de lembranças que são o fermento do quotidiano, desmerece-se mulher vindoura. Ficou refém do tempo, das recordações. De um acaso destinado a um ocaso que não aceita.
Diz que continua a amar como no tempo fugaz desse acaso. Talvez não saiba do que fala. Não sabe que o amor aos outros pressupõe o amor a si própria.

Sem comentários: