22.10.14

Um estranho

Julia Holter, "Hello Stranger", in https://www.youtube.com/watch?v=dtp-Vl90uDU
Às vezes, é como se o corpo não pertencesse ao ser. E o corpo estranhasse o estranho que nele se entranha.
É madrugada. A noite ainda embebida na ausência de luz. Os olhos abertos nada distinguem. Os olhos estão submersos na penumbra do silêncio. Os dedos tateiam o corpo, só para sentir se o corpo é mesmo corpo – o corpo. É uma impressão estranha. O corpo é sentido, os dedos percorrem-no em toda a sua extensão. Mas, lá por dentro, é como se não houvesse sensações para sentir, como se os archotes tivessem uma luz pífia e tudo estivesse sitiado nas paredes frias de um quarto soturno. O corpo em antinomia com o ser. Um estranho em colonização do corpo. Em duas metades e cada uma em luta com as forças todas para asfixiar a outra.
Os olhos, agora marejados, querem irromper da luz baça que vem das ruas da cidade. Nem as luzes que emprestam luz à cidade e a retiram da penumbra se conseguem ver. Parece um nevoeiro plúmbeo. Os olhos perdem a orientação das coisas, perdem-se numa errância que não é intencional. As mãos apertam-se com a força toda, como se tivessem medo que o corpo se apartasse do ser – daquele ser estranho – e deixassem de ser partes do mesmo todo. Talvez os olhos não estejam abertos. Talvez seja só uma ilusão. E tudo seja a plenitude que sempre julgara. O estranho em mim, não é. Apenas uma paleta de cores desmaiadas ditada pelo caleidoscópio de sentidos que flui com a voracidade dos murmúrios. De onde sobram diversos eu.
Mas a noite demora-se. Dir-se-ia, pelo tempo passado, que era tempo de vir o dia. Os olhos que se consomem na penumbra altiva reveem as estátuas que são o desdobramento dos tempos de outrora. Revisitam-se imagens. Não têm serventia. De lá não encontro aprendizagem alguma. De repente, um pedaço de espuma do mar sobrevoa o extenso areal e vem pousar na maçã do rosto. É uma centelha que ilumina o rosto. Que é o mesmo. 
A noite demorava-se, contudo. Talvez fosse inverno e o estranho, sem contar, tivesse encontrado regaço numa paisagem ártica.

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