2.10.14

O condutor de ambulâncias que dá de comer aos gatos abandonados

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Na Síria, a bestialidade da guerra constrói cidades fantasmas entre a destruição das armas. Há gente assisada que foge da morte que os feiticeiros da guerra anseiam espalhar. Deixam tudo para trás. Haveres e memórias, um pedaço de si, desenraizados à força pela força bruta das armas. Sobejam os animais de estimação, que ficaram a importunar os fantasmas que quiseram tomar de assalto as cidades que os furibundos guerreiros queriam que fossem fantasmas.
Os gatos sem dono não têm mantimentos. Estavam condenados à morte pela jugular do abandono da cidade. Mas há um homem que vai todos os dias à cidade perdida para alimentar os gatos errantes. Gasta três euros por dia nos mantimentos. Enquanto, nos arredores, os combatentes fazem troar a artilharia pesada e no ar pesa o cheiro pútrido dos corpos despedaçados pelos obuses e metralhadoras. Só há sentido de humanidade se ajudar quem não se oferece no altar da guerra, agora que os inocentes se puseram a léguas e recebem ajuda de outros voluntários.
O condutor de ambulância não perde o norte à rotina. Com os gatos à sua ilharga, já não famintos mas amigos dele, mete luvas nas mãos e oferece pequenos pedaços de carne à boca dos bichos. Imagina-se que os gatos desatam numa correria mal vêm a ambulância a chegar. E que os gatos ronronam ruidosamente mal vêm o condutor da ambulância com o saco carregado de carne, sinal da refeição diária. Em grupo, cercam o condutor da ambulância e esfregam-se nas suas pernas, convocando a atenção que o homem procura desdobrar pelos gatos.
Esta é a estória de uma sobrevivência improvável. O porvir será o curador dos gatos que a guerra condenou à indigência e ao desafeto por separação dos donos. Assim sobreviva o condutor da ambulância, que faz generosidade com os gatos por os homens ensandecidos com a poeira da guerra terem retirado do seu pessoal dicionário a palavra bondade.

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