6.10.14

O contrabandista das almas


In http://operamundi.uol.com.br/media/images/Fresque_de_Mandrin_Yves_Morvan_Brioude.jpg

Não acautelava o sustento próprio, que o devir dos outros era maior demanda. Fazia travessias entre as fronteiras que eram o território habitado pelos outros. Podia ser um mendigo sentado em cima dos seus andrajos enquanto afagava um cão tristonho. Podia ser um rapazola desassisado de regresso da noitada, ainda sob o efeito de potentes drogas. Podia ser uma velhinha sozinha, a quem já não valia ninguém por ninguém a conhecer. Podia ser o senhor agarrado ao ombro do filho em íntima conversa. Ou uma donzela coquete com apetência pelas revistas cor-de-rosa. Podia ser qualquer pessoa que viesse pelo caminho e ele julgasse preciso decantar impurezas. 
Era quando, sem dar conta da sua ação, trespassava as fronteiras do outro para nele habitar por uns momentos. Pouco tempo chegava para domar as impurezas que vinham das arestas vivas, ainda por limar. Em alguns casos, seriam arestas que nunca haveriam de ter depuração se não fosse pela sua ação generosa. Tratava de traficar elementos que se depõem nas almas. De umas retirava elementos bondosos que medravam em excesso; não fariam falta a seus detentores. A outros enxertava elementos em falta, a quimera necessária para a decantação das impurezas. Sabia que não podia aspirar a traduzir em perfeição as impurezas alheias. Nem essa era a pretensão. Mas se ao menos pudesse reduzir as arestas que magoavam quem nelas esbarrava, não seria desperdício o tempo usado com a empreitada.
Um dia acordou com uma dúvida existencial: e se as impurezas que trata de expurgar não são impurezas, se não as bissetrizes que vêm à tona por entre a complexidade dos espelhos de onde irradia a subjetividade? Não cuidava de ungir, através de seus generosos dedos, um mapa imaculado, desprovido de matéria pútrida que encontramos sempre nos mortais. Deu-se conta de que era intruso no ser dos outros. Justificação alguma servia para açambarcar o ónus de perito das almas alheias. Por este andar, chegaria a velho a curar dos outros sem saber que nem deles tratava, nem de si afiançava benfeitorias que se vissem. 
O melhor seria ouvir as sereias que ecoavam ao umbigo. 

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