6.3.15

Mistério do poço dos negros

Dave Grohl, Josh Home and Trent Reznor, “Mantra”, in https://www.youtube.com/watch?v=L2kGNdE0b5Q
O portão enferrujado do jardim, ao lado do poço dos negros, amanhecia com flores e fotos que eram diferentes todas as manhãs. O guarda dos escritórios das empresas multinacionais, paredes-meias com o jardim, estava de atalaia. Passara as últimas noites em branco – como soe ser com vigilantes noturnos, mas agora já não fechava meio olho, como dantes. (Era a honra profissional que estava em causa, e não estava para aturar os doutores e engenheiros arrogantes que o acusaram de dormir nas horas de serviço.) E nem com as noites brancas, e até com a ajuda de binóculos e meticulosas estivas pelos arredores, soubera de vivalma a achegar-se ao portão enferrujado do jardim ao lado do poço dos negros.
As flores e as fotografias eram sempre diferentes. Não havia padrão, o que confundia os investigadores que foram chamados ao lugar (a contragosto; afinal, não havia crime). Tudo parecia ser aleatório. Uma manhã, a juntar às fotografias e às flores que, desarranjadas, tinham sido espalhadas à entrada do portão do jardim, estavam jogos infantis, uns patins estropiados, uma lupa defumada, um saco de supermercado (vazio) e um punhado de folhas amarrotadas com uns sarrabiscos arrevesados que eram um todo ininteligível.
Parecia o jogo do gato e do rato. A misteriosa personagem que usava a noite para reinventar o portão do jardim sabia que tinha todos os olhos em si. Talvez se excitasse com a pulsão da transgressão, mesmo que não estivesse a cometer crime algum. Mas como até a polícia já andava em brigada apeada a esquadrinhar as ruelas em redor do portão do jardim, a personagem misteriosa embarcou no jogo. A páginas tantas, a gente comum acreditou que se tratava de um fantasma. Até os cães farejadores, a certa altura destinados à caça do homem, não conseguiam encontrar pistas.
Os poderes instituídos tomaram o pleito a sério. Do erário público veio autorização para câmaras de vigilância no portão do jardim ao pé do poço dos negros. A misteriosa personagem, que não era poltrão nem descuidado, tomou conhecimento da artimanha. Ficaram a perder os habituais visitantes das alvoradas no portão enferrujado do jardim ao pé do poço dos negros – e os amantes do esotérico, que voltavam a acreditar em fantasmas. A partir desse dia, só encontraram o portão enferrujado.

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