FKA
Twigs, “Two Weeks”, in https://www.youtube.com/watch?v=3yDP9MKVhZc
Trazemos
uma caixa negra embebida na alma. É como os aviões. Cada avião tem a caixa
negra que regista os dados do voo e conta o que correu mal quando se despenha.
Não há possibilidade de segredos. Nós somos diferentes dos aviões. Somos um santuário
de responsabilidade individual. A caixa negra pessoal só interessa a cada um. A
contabilidade faz-se entre a caixa negra e a consciência que tem competência.
Na
maior parte dos casos, os segredos inconfessáveis guardados na caixa negra são
sepultados com o seu titular. Os pessoais desastres não interessam a mais ninguém
(talvez exceto quando os segredos atingem outras pessoas, a quem a sua revelação
interessa por poder mudar vidas ou entendimentos sobre pessoas e episódios). Às
vezes interrogo-me se uma alma, pressentindo o fenecimento, processa o
desalfandegamento da sua caixa negra. Não importam os arrependimentos no leito
da morte com o propósito de arrematar um pedaço no prometido céu (que isso
pertence ao terreno da fé, e da fé dos outros não deve falar quem dela não tem
conhecimento). Haverá um fulgor de lucidez, aos senescentes não desprovidos de
razão e de forças, que os leve em peregrinação por dentro da sua pessoal caixa
negra? Contarão a alguém, um confessor arregimentado à última hora, ou um
confessor apalavrado para o efeito, os transcendentes segredos que guardavam na
caixa negra e de que não querem tutores únicos ao partirem de entre os vivos?
A
outros, menos afortunados (ou pelo contrário), a quem a morte não chega com pré-aviso,
o sobressalto da revelação da caixa negra não chega a ser sobressalto. Vamos
supor (em contramão contra o agnosticismo sem freio) que se perpetua uma essência
qualquer das pessoas para além da vida (chame-se-lhe alma; chame-se-lhe, por
assim dizer, matéria estruturalmente indestrutível que se mantém nas provisórias
lembranças de quem guarda o fenecido na memória). E neste caso, conseguem os
desprevenidos da morte tolerar a perenidade da sua caixa negra, são capazes de
coabitar sozinhos com ela quando já não podem partilhar os mais recônditos
segredos com quem sobre eles teria aceno reprovatório?
A jugular da morte é um
tribunal vazado em paradoxos. Os que sofrem até deixarem o leito da morte têm,
talvez, a compensação de se libertarem do ónus da pessoal caixa negra. Os que têm
a graça de não padecer com a indignidade do sofrimento que se prolonga até ao
derradeiro fôlego pagam o preço de levarem consigo a caixa negra para a
imortalidade da alma.
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