25.3.15

Caixa negra

FKA Twigs, “Two Weeks”, in https://www.youtube.com/watch?v=3yDP9MKVhZc
Trazemos uma caixa negra embebida na alma. É como os aviões. Cada avião tem a caixa negra que regista os dados do voo e conta o que correu mal quando se despenha. Não há possibilidade de segredos. Nós somos diferentes dos aviões. Somos um santuário de responsabilidade individual. A caixa negra pessoal só interessa a cada um. A contabilidade faz-se entre a caixa negra e a consciência que tem competência.
Na maior parte dos casos, os segredos inconfessáveis guardados na caixa negra são sepultados com o seu titular. Os pessoais desastres não interessam a mais ninguém (talvez exceto quando os segredos atingem outras pessoas, a quem a sua revelação interessa por poder mudar vidas ou entendimentos sobre pessoas e episódios). Às vezes interrogo-me se uma alma, pressentindo o fenecimento, processa o desalfandegamento da sua caixa negra. Não importam os arrependimentos no leito da morte com o propósito de arrematar um pedaço no prometido céu (que isso pertence ao terreno da fé, e da fé dos outros não deve falar quem dela não tem conhecimento). Haverá um fulgor de lucidez, aos senescentes não desprovidos de razão e de forças, que os leve em peregrinação por dentro da sua pessoal caixa negra? Contarão a alguém, um confessor arregimentado à última hora, ou um confessor apalavrado para o efeito, os transcendentes segredos que guardavam na caixa negra e de que não querem tutores únicos ao partirem de entre os vivos?
A outros, menos afortunados (ou pelo contrário), a quem a morte não chega com pré-aviso, o sobressalto da revelação da caixa negra não chega a ser sobressalto. Vamos supor (em contramão contra o agnosticismo sem freio) que se perpetua uma essência qualquer das pessoas para além da vida (chame-se-lhe alma; chame-se-lhe, por assim dizer, matéria estruturalmente indestrutível que se mantém nas provisórias lembranças de quem guarda o fenecido na memória). E neste caso, conseguem os desprevenidos da morte tolerar a perenidade da sua caixa negra, são capazes de coabitar sozinhos com ela quando já não podem partilhar os mais recônditos segredos com quem sobre eles teria aceno reprovatório?
A jugular da morte é um tribunal vazado em paradoxos. Os que sofrem até deixarem o leito da morte têm, talvez, a compensação de se libertarem do ónus da pessoal caixa negra. Os que têm a graça de não padecer com a indignidade do sofrimento que se prolonga até ao derradeiro fôlego pagam o preço de levarem consigo a caixa negra para a imortalidade da alma.

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