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“Não pode impedir-me de dizer uma coisa. Até
no escuro eu posso gritá-la: DANTES NA PAISAGEM HAVIA SUBIDAS E DESCIDAS. AGORA
SÓ HÁ DESCIDAS. COMO É QUE EXPLICA ISTO?”, in “O fim das possibilidades”, de Jean-Pierre Sarrazac,
Teatro Nacional de S. João.
1.
A peça de teatro é longa.
Pretende ser um retrato das ilusões que deixaram de pertencer às pessoas, às
pessoas comuns, o imenso exército a quem os tempos modernos entregaram uma
orfandade. A palavra “crise” foi pronunciada várias vezes, sem pudor. Não se
podia afirmar que era uma ficção do real; era uma crítica estruturada do real.
O que exige uma hermenêutica da peça (número 3) e uma hermenêutica do real
(número 4), com o devido registo subjetivo de que ambos os exercícios são credores.
2.
“O fim das
possibilidades” é mais que uma simples metáfora do real. É uma crítica ao
quadro pungente que deslaça o cimento da sociedade, mercê da insensibilidade de
quem cinzela a substância da sociedade. Consta que deus se aliou aos poderosos
(a determinar a seguir) com o propósito de desapossar o numeroso exército de descamisados,
o povo cujos sonhos vêm capitulando perante promessas de bem-estar que não
passam de ardis. Deus transige com os turvos interesses que rasgam as ilusões
que democraticamente deviam pertencer à gente comum. Aos tutores do grande
capital e da alta finança é que interessa a anemia dos novos descamisados.
Sarrazac, numa
interpretação que roça o auge do pessimismo antropológico, exibe ateísmo e
rejeita certas teorias progressistas que são o esteio de uma aliança entre o
catolicismo e os direitos dos trabalhadores (como os mais fracos a quem a
igreja deve valer). Deus, na abordagem de Sarrazac, fecha os olhos à alienação
dos povos. Permite que “O adversário”, figura porventura com laivos satânicos, seja
o mestre de obras da nova escravização dos abandonados, numa improvável aliança
entre deus e o diabo.
“O adversário” tanto pode
ser um diabo transfigurado como a personificação do tremendo mal que reacende a
luta de classes e funciona como novo balão de oxigénio de um marxismo que se
julgava de fogo fátuo. “O adversário” pode ser apenas uma figura que tutela os
interesses dos capitalistas, sendo dito ao espetador que aos capitalistas
interessa a fragilização dos trabalhadores, o seu empobrecimento e, por arrastamento,
o estado de necessidade que os coloca no umbral da miséria humana. Pessoas
assim, remetidas a uma homogénea condição que aplaca a subjetividade que é a
riqueza da condição humana, são o requisito para os mais ricos se aproveitarem
delas e terem um imenso exército de mão de obra disponível para o que quer que
seja, ao salário que os capitalistas quiserem pagar, com a degradação das
condições sociais que os trabalhadores têm de aprender a aceitar.
“O adversário”, insidioso,
convence as pessoas a irem pelo caminho que é uma longa descida. Ilude-as,
aproveitando-se da desesperança que delas se apoderou, do cansaço com o tempo
presente, da chama evaporada das ilusões que eram impressão digital de um
modelo que respeitava os direitos dos mais carenciados e procurava dotá-los de
amparo. Eram as paisagens outrora postais ilustrados das serranias, como as
serranias soem ser – uma sucessão de ladeiras que ora levam os viandantes a
subir à cumeada, ora os transportam por descidas até aos vales. “O adversário”
arregimenta as almas fragilizadas e vai, uma após a outra, ensinando o caminho
descendente até à aridez de onde já não conseguem fuga.
Não é tão fácil a tarefa
de “O adversário”. Algures a meio dos trabalhos com caução divina, esbarra num
personagem impenitente, alguém que soçobrou a um niilismo irremediável e se
escondeu na miragem da bebida. Apoquentado, o personagem ameaça com o
enforcamento para a resolução de todos os seus males. Para aflição de “O
adversário”, que vê nesse resultado o esconjurar da sua missão: nem uma alma se
podia desaproveitar para o purgatório de que as convencia a serem habitantes.
Simbolicamente, “O
enforcado” é a âncora da resistência da redução a um nada. Antes o seu niilismo
que um niilismo catastrófico ditado pela pena de outrem, de um juiz malsão que
o queria destinar ao mesmo anonimato da demais turba. “O enforcado” assume um
inesperado protagonismo. O personagem vicioso e caído num interminável ladário
de fraquezas é, num ápice, o bedel da resistência ao apoucamento. Faz as vezes
dos resistentes, dos que não se reveem no plúmbeo real mas que também não
ajuramentam diante da implacável resignação. No fim da dialética entre “O
adversário” e “O enforcado”, a ilusão final, a ilusão fatal: “O adversário”
concebe um ardiloso cenário com “O enforcado” e a consorte, mais o amigo
emigrado de África e a namorada, em jovial momento de descontração com uns
tiques de consumismo burguês à mistura. Mas não passa de uma ilusão.
A “O enforcado” e amigos foi
destinado um calabouço que não era como o indiferente estado vegetativo em que
se consumiam os demais. Era um logro, todavia, aquele cenário luminoso em que
os quatro se embebiam numa burguesa condição. Era o preço que pagavam pelo seu
silêncio. Nisso, não se distinguiam da plebe restante, gente destinada à sofreguidão
da iniquidade. Deslumbrados com o turbilhão burguês, nem davam conta de como
tinham capitulado ao fim das possibilidades. Triunfavam os mais fortes.
3.
“O fim das
possibilidades” tem verosimilhança com uma metáfora do real. A palavra “crise”
aparece na narrativa várias vezes. À crise imputa-se a degradação da vida da
gente comum, a profusão da miséria, um caminho ciclópico que não augura um
porvir decente aos que estão, à partida, no limiar da desgraça. O espetador é
confrontado com um retrato pungente do real que nos acomete. É um murro no
estômago, convocando militâncias, furando a insensibilidade de algumas
consciências, metendo fundo um punhal nos que teimam na letargia e não admitem
que o real é um retrato que envergonha a espécie.
Não está em causa a crítica
vulgar, entre os setores mais à direita, de que a arte (as artes) está dominada
por artistas em concubinato com uma esquerda qualquer. Não interessa a vulgata
da militância ideológica de algumas manifestações artísticas. Se a direita – as
direitas – não consegue afirmação cultural, o mal não é das esquerdas,
certamente. À direita não importa denunciar a militância dessas manifestações
artísticas. Fazê-lo, será a prova de um mau perder e será escorregar para uma
maleita que frequentemente invade setores mais radicais à esquerda e de que não
desaproveitam a oportunidade para denunciar: a intolerância às ideias que
partem de um lado da barricada em que se não revejam.
Felizmente temos as artes
como expressão maior das dissidências. Temo-las como uma janela que obriga a
pensar, a interrogar as ideias feitas, a jogar com os dogmas instituídos, a
jogarmo-nos numa hecatombe do possuído, se preciso for. “O fim das
possibilidades” tem este mérito. Como possível metáfora do real (asserção
questionada a seguir), é um desafio a quem se não revê na retórica do
empobrecimento causal. Não se pode ficar indiferente ao retrato do real, por
mais que nele se anote uma fotografia desproporcionada e exagerada dos limites
que se emprestam ao real. Mas “O fim das possibilidades” pode ser revertido
contra quem, através de narrativas deste teor, se ufana de imperativos
categóricos e apostrofa, numa condenação sumária, o real destituído de
sensibilidade social, um real que nos desumaniza mercê da indistinguibilidade
em que somos oferecidos no altar dos interesses dos poderosos.
A melhor descrição de “O
fim das possibilidades” não é uma metáfora do real. Esta peça de teatro é uma
metonímia. Uma descrição do real que aprece contaminada pela crise, e que se
embebe nas suas consequências como recurso discursivo que sublinha o estado
deplorável a que chegou a humanidade, funde as duas palavras (teatro e crise)
no mesmo conceito operativo. Não se julgue que há negação da realidade ao propor
a hipótese da metonímia da peça. O analista atento percebe o que se passa ao
seu redor. É capaz de tomar consciência da perturbação que a crise trouxe à
vida de milhões de pessoas, independentemente dos lugares onde vivem. Onde pode
haver divergência é na escala da observação. Ou de como o recurso à metonímia
não é um mero exercício de estilo dramatúrgico, antes um pronunciamento (logo,
ideológico) sobre os contornos do real. O que mais conta é a superioridade da
liberdade expressiva.
O que fica por entender é
se a hermenêutica da dramaturgia quadra com a hermenêutica do real. Olhares
diferentes veem por diferentes lentes. As sensibilidades afivelam-se por
diferentes espessuras, pelos papeis que julgam imperativos aos atores que são
jogados para dentro do palco. Em “O fim das possibilidades”, contracenam em
números desiguais na exata proporção inversa do poder com que são entronizados
no seu microcosmos. Sobrelevam os novos descamisados, o numeroso exército
condenado a um vegetativo sobreviver, por imposição dos interesses mais
poderosos afirmados por todos aqueles que jogam o seu enorme poder na balança
dos poderes. São mais os condenados a uma irrisória existência, ou à mera
sobrevivência de resignação; em número superior, aninham-se diante da canhestra
corrupção perpetrada pelos poderosos que, com o beneplácito de deus, têm em “O
adversário” o seu arquiteto. Não é por acaso que esta personagem traz o nome de
“O adversário”. A adversidade a que condena os desvalidos salpica-lhe a fronte,
sem que perca a vergonha ou seja torturado por dores da consciência que,
possivelmente, não possui.
4.
“O fim das
possibilidades” não nos oferece o lado oculto da lua. Ficamos sem saber se há
um projeto que edifique um modo diferente de problematizar as relações sociais
e que soluções teriam aptidão para reconfigurar o cosmos. Ficamos apenas a
saber que nos abeiramos do limiar do fim das possibilidades e não soubemos
meter travões à deriva. Uma casta de privilegiados, feita da cumplicidade entre
ricos e poderosos, não quis reconhecer a doença nem tão pouco mostrou vontade
para esboçar uma terapia (uma impossibilidade, atendendo à falta de
predisposição para admitir a doença). Quando demos conta, já tínhamos caído no
precipício. Onde ficamos reféns do fim das possibilidades. Sobrou a desilusão
que nem sabe a desilusão, tão anestesiados estamos assim que somos empurrados
para a fraudulenta gratificação da descida irremediável.
Talvez não tenha sido intenção
de Sarrazac mostrar uma contrapartida. A peça é, já foi dito, longa no mero
diagnóstico do fim das possibilidades. Não consigo, porém, resistir a perguntar
que atalhos seriam impostos para restaurar uma decência que, a julgar pelo tom
apocalíptico da peça, parece miragem semelhante a qualquer virgindade cindida.
Porventura Sarrazac – e agora entro no registo interrogativo que mete à mistura
um naco de adivinhação – proporia o exílio dos ricos, para assim os poderosos
se emanciparem do freio que constantemente lhes metem na ação e na inação.
Em “O fim das possibilidades”
discerne-se esta generalização: os ricos não se aproveitam, nem um, pois querem
reduzir a uma expressão mínima os que deles dependem para produzir riqueza. Querem
que os pobres sejam mais pobres. Ignaros como são, nem percebem que o empobrecimento
causal e a anemia a que são atiradas as gentes é o fermento de uma revolta que
pode consumir os ricos pelas entranhas. É genética a propensão para o abuso e a
opressão, com a ajuda providencial do avanço da tecnologia que serve para
desvalorizar ainda mais dramaticamente quem depende do trabalho que oferece.
Aqui, o verbo não é despiciendo: tanta é a destruição das possibilidades que
outrora foram prometidas aos desfavorecidos, que hoje só lhes resta quase
oferecem a sua força braçal, tamanho o estado de necessidade em que foram postos.
O remédio pode ser o exílio dos ricos, a consequente apropriação da sua riqueza
e sua socialização, em nome do bem comum. À falta de consciência pela miséria
dos outros, legítimo recurso final é o degredo com extração forçosa da
abastança acumulada.
Ou, porventura ainda, o
autor proporia uma imperativa lobotomia das consciências dos poderosos. Se o
mal é a ausente sensibilidade dos ricos, que se contamina aos poderosos porque
os poderosos bebem do mesmo cálice, as forças contínuas alimentadas pelo
numeroso exército que é uma maioria em silêncio dever-se-iam sublevar e tomar
comando do poder e das armas. Sob pena de exílio, ou em instância final de
recurso, operar-se-iam lobotomias que iriam por dentro das consciências dos
poderosos só para as tornar sensíveis ao torpor dos miseráveis. Só para os
educar a serem matéria generosa ao serviço da correção das iniquidades, porque
toda a gente que se preze de ser decente sabe que as desigualdades não são
suportáveis. Novos panfletários viriam cerzir as bainhas de uma nova
moralidade. Imperativa e sem direito a dissidências, estas liminarmente
condenadas a pena maior. E a degredo, também.
Nessa altura, reeducados
os ricos e os poderosos (por esta ordem), este seria um lugar mais justo.
Voltaríamos a falar do ilimite das possibilidades. E toda a gente teria direito
a voltar a sonhar. Pois a ladeira vertiginosa para onde foram empurradas, a
descida íngreme e impossível de recuar, tinha sido uma indecente castração dos
sonhos legítimos das pessoas vulneráveis. Cerces os sonhos, já não contavam as
possibilidades no tabuleiro dos jogos. Reeducados os ricos e os poderosos; mas
em todos os lugares, para não permitir que os ricos encomendassem a sua fortuna
a lugares outros que passassem incólumes à revolucionária renovação das
possibilidades. Os ricos saberiam que noventa por cento, pelo menos, da fortuna
gerada com o contributo da força braçal teria de reverter a favor dos mais
pobres através da redistribuição imperativa. Todos ganhavam com a vontade de
redistribuição. E o palco seria mais respirável.
Talvez os desprovidos de
direitos estejam anestesiados pela inércia, ou numa hibernação propositadamente
inoculada pelos poderosos para não serem agentes perturbadores da ordem
estabelecida. Só assim se compreende que uma imensa maioria de miseráveis se
tribalize na inação, que não se subleve sem propósitos vingativos para repor as
possibilidades que lhes foram castradas. As artes devem estar ao serviço desta
renovada luta de classes. Sem se importarem com os exageros retóricos nem com as
generalizações inapropriadas que tomam todos os ricos pela mesma má cepa – como
se o património genético fosse todo indiferenciado, como se também não houvesse
bons e maus trabalhadores. Só falta a sensibilidade da gente comum para a
educação através das artes. É o grande porém do plano salvífico.
5.
A língua porosa tem
inconvenientes. A metonímia da crise em roupagem de peça de teatro pode não
estar ao alcance de qualquer alma de espírito aberto. Não era má ideia que
houvesse uma ramificação artística de sinal contrário. Que viesse explicar que
nem sempre o pessimismo antropológico colhe, e que uma observação cuidada, com
adequados meios de diagnóstico, decantaria as leituras que mais parecem
catarses que mobilizam militâncias contra uma coisa qualquer.
Em “O fim das
possibilidades” extrai-se a leitura que nunca a humanidade terá descido tão
baixo, ou, para se não ser tão radical na hermenêutica da peça de teatro, que
este é um dos momentos mais deploráveis da história da humanidade. Tudo se
conjuga para jogar os desprotegidos contra a sordidez das feras, estas como que
possuídas por uma avareza e legitimadas por um egoísmo atroz que abre uma fenda
profunda entre os have e os have-not. E, porém, poucos fazem uma digressão
pelo bem-estar (e não, não se conta apenas o bem-estar material) entre o agora
e diferentes outroras à escolha dos céticos que se desiludiram com as cores do
presente e já não confiam no porvir. Como parece não contar a endogeneização do
ser, a sua mutabilidade diante dos tempos que mudam e das circunstâncias que
não ficam estacionadas no tempo. Como se o ser fosse apenas um ser reativo ao
ambiente que o cerca, sem capacidade adaptativa, sem livre arbítrio. Parece não
contar a complexidade do ser, a sua demanda crescente por exigências que dantes
nem eram sonhadas, e como isso adestra um abismo entre as possibilidades e a
espessura do real.
O que mais custa é que se
desestimem as impossibilidades. Pois são elas o motor genuíno que nos fazem
avançar como espécie. Há no pessimismo antropológico de “O fim das
possibilidades”, elevado a um expoente máximo em que até deus perdeu a noção da
justiça e se aliou aos ricos e aos poderosos, um ultraje ao potencial de
mudança que se enquista nas impossibilidades. Nas impossibilidades que hoje o
são, mas que passam para o domínio das possibilidades mercê da destreza dos
homens. Há um olhar que não pode capitular aos traços sombrios que emprestam
paisagem ao real contemporâneo. Outra vez: não é negação do real, que está tão
apoderado por manifestações de invulgar desorgulho
na humanidade.
Mas, insisto, talvez a
questão mais importante é saber o que é feito do limite das impossibilidades.
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