Dave
Grohl, Josh Home and Trent Reznor, “Mantra”, in https://www.youtube.com/watch?v=L2kGNdE0b5Q
O portão enferrujado do
jardim, ao lado do poço dos negros, amanhecia com flores e fotos que eram
diferentes todas as manhãs. O guarda dos escritórios das empresas
multinacionais, paredes-meias com o jardim, estava de atalaia. Passara as
últimas noites em branco – como soe ser com vigilantes noturnos, mas agora já
não fechava meio olho, como dantes. (Era a honra profissional que estava em
causa, e não estava para aturar os doutores e engenheiros arrogantes que o
acusaram de dormir nas horas de serviço.) E nem com as noites brancas, e até
com a ajuda de binóculos e meticulosas estivas pelos arredores, soubera de
vivalma a achegar-se ao portão enferrujado do jardim ao lado do poço dos
negros.
As flores e as
fotografias eram sempre diferentes. Não havia padrão, o que confundia os
investigadores que foram chamados ao lugar (a contragosto; afinal, não havia crime).
Tudo parecia ser aleatório. Uma manhã, a juntar às fotografias e às flores que,
desarranjadas, tinham sido espalhadas à entrada do portão do jardim, estavam
jogos infantis, uns patins estropiados, uma lupa defumada, um saco de
supermercado (vazio) e um punhado de folhas amarrotadas com uns sarrabiscos
arrevesados que eram um todo ininteligível.
Parecia o jogo do gato e
do rato. A misteriosa personagem que usava a noite para reinventar o portão do
jardim sabia que tinha todos os olhos em si. Talvez se excitasse com a pulsão
da transgressão, mesmo que não estivesse a cometer crime algum. Mas como até a
polícia já andava em brigada apeada a esquadrinhar as ruelas em redor do portão
do jardim, a personagem misteriosa embarcou no jogo. A páginas tantas, a gente
comum acreditou que se tratava de um fantasma. Até os cães farejadores, a certa
altura destinados à caça do homem, não conseguiam encontrar pistas.
Os poderes instituídos
tomaram o pleito a sério. Do erário público veio autorização para câmaras de
vigilância no portão do jardim ao pé do poço dos negros. A misteriosa
personagem, que não era poltrão nem descuidado, tomou conhecimento da
artimanha. Ficaram a perder os habituais visitantes das alvoradas no portão
enferrujado do jardim ao pé do poço dos negros – e os amantes do esotérico, que
voltavam a acreditar em fantasmas. A partir desse dia, só encontraram o portão
enferrujado.
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