Davendra
Bahnart, “Feels Just Like a Child”, in https://www.youtube.com/watch?v=PhW7FLo6peU
Acordar já quando a tarde
manda no relógio era hábito que prometera banir. As preleções da alma, todavia,
tinham repetida procrastinação. Não sabia que a vontade podia ser domada por
tamanhas forças ocultas. Era isso e a apetência para a falta de banho.
Comprazeu-se um dia, ao ler num jornal gratuito (amarrotado no banco do
comboio), que quatro em cinco mulheres não tomam banho todos os dias. Assim
como assim, com ele a coisa ia de dia em dia, até a sua própria pituitária
exigir tratos de higiene para o absolver do um cheiro fétido até para os seus
pouco exigentes padrões.
Poucas coisas o
incomodavam – não levasse ele a vida com a ligeireza de quem não sabia em que
dia está, ou que horas são, ou que afazeres tem de cumprir (predicados de quem
dispensava uma agenda, sequer mental). Um punhado delas fazia franzir o
sobrolho, sem chegarem para acelerar o pulsar das veias ou trocar o perene
estado aéreo e a fleuma que – poder-se-ia dizer – era britânica.
Um: velhinhas no parque alimentando
pombos. Tinha uma irritação com pombos desde que um defecara em cheio num gorro
de estimação que estava gasto. Não que o gorro fizesse gala à limpeza, que
estava tão encardido que já pedia, e há algum tempo, imersão em água e
detergente. Foi por isso que não perdoou ao pombo incontinente: ter sido
obrigado a ir a uma lavandaria pública para retirar os restos fecais da ave. O
gorro nunca mais foi o mesmo (limpo como veio da máquina de lavar).
Dois: estudantes
envergando o autoproclamado traje académico. A prosápia de uns, talvez líderes
da turba, que comandam a turba aos gritos de claque. As bebedeiras colossais. O
adiamento do estudos. E depois ainda o acusavam de ser o maior lunático da
cidade; ao menos não andava a fazer de conta que fazia alguma coisa, nem
dispensava abundante dinheiro dos progenitores em comezainas, espirituosas
bebidas, flirts boçais (eles) e
flatulências intelectuais (elas), vergonhoso desempenho académico, vexatórias
“socializações” de novatos – e por aí fora.
Um dia, irritado como não
sabia ser possível, chegou ao pé de uma pandilha que ensaiava cantares e
melodias do catálogo estudantil. Perguntou-lhes, do alto dos seus andrajos e da
sua barba rala e deslavada, se queriam ser alguma coisa na vida. Um dos metecos
(por os ter como alienadas personagens) ripostou, com desdém, “e quem és tu, meu maltrapilho, para fazeres
perguntas aqui aos doutores?” O homem, transido pelos nervos, tirou um
papel desbotado e encarquilhado do bolso da gabardine. Era um diploma. Passado
por universidade estrangeira. Doutoramento em filosofia.
Os “doutores” não se
ficaram. Prosseguindo com o desdém e tirando o lustro à bazófia de marca,
riram-se, em gargalhada farta, do (assim o viam) maltrapilho. Um deles, em
surdina, atirou: “valeu-te de muito o
doutoramento...”. Ao que o homem, sossegando os nervos, ripostou: “e vocês, estão a estudar para quê?” A
algazarra estudantil parou no instante. Os metecos dispersaram, sem saberem se a
pergunta tinha resposta.
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